Terrir 'Juntos' leva conceito de alma gêmea a extremos grotescos
- Guilherme Cândido
- há 14 horas
- 3 min de leitura

Segundo Platão, através do mito do Banquete, os humanos eram seres andróginos com quatro braços, quatro pernas e duas faces. Zeus, temendo seu poder, os dividiu ao meio, condenando-os a passar a vida buscando a outra metade. O australiano Michael Shanks resolveu levar isso ao pé da letra quando escreveu o roteiro deste Juntos, sensação de Sundance em que Alison Brie e Dave Franco, casados fora das telas, interpretam “namoridos” que mal percebem estar à beira de uma crise.
Millie se incomoda com o fato de Tim ainda não ter uma carreira consolidada. No auge de seus 35 anos, o sujeito ainda aspira ser uma estrela da Música, mal conseguindo se bancar, algo que a esposa faz através de seu trabalho como professora de ensino fundamental (ao menos lá, os educadores são bem remunerados). Sem perspectiva, ele não tem alternativa senão acompanhar Millie quando esta resolve aceitar uma proposta de emprego, trocando a metrópole pelo interior. Lá, a mulher também espera dar um passo a frente no relacionamento, mas será que Tim está pronto?

Num belo dia, porém, os dois resolvem fazer uma caminhada, mas acabam caindo numa caverna bizarra ao ponto de trazer bancos de igreja encrostados na parede e um sino cujo símbolo exótico deveria chamar a atenção dos dois. Que para piorar, tomam a infeliz decisão de beber da mesma fonte que dois cachorros beberam no prólogo, pouco antes de iniciarem um processo grotesco de fusão física.

Exibindo paralelos atmosféricos com o ótimo A Hora do Mal, lançado na semana passada e ainda em cartaz nos cinemas brasileiros, Juntos é mais um filme de terror que não afasta o humor ao desenvolver sua narrativa. Pelo contrário, o abraça. O resultado é uma experiência mais vocacionada para a repulsa, resvalando no ridículo para que o espectador possa rir dos absurdos que invadem a tela.

Together, no original, pode até não surfar na recente onda do “terror elevado”, mas engana-se quem imagina se tratar de uma história voltada exclusivamente para o escapismo. Michael Shanks mal parece comandar seu primeiro longa-metragem quando estabelece com invejável segurança a ironia que moverá sua porta de entrada para Hollywood. Afinal, a força motriz do projeto reside na atração incontrolável (e incompreensível) entre duas pessoas cada vez mais distantes entre si. Tim e Millie não percebem, mas quanto mais a relação entre eles se deteriora, mais forte é a atração física que sentem um pelo outro. Literalmente.

O desenrolar dessa premissa assemelha-se a uma continuação conceitual do sucesso A Substância (2024), com o horror corporal cronenberguiano pontuando o magnetismo sobrenatural que atrapalha a vida dos protagonistas. Entre as várias sequências que desafiam a indiferença do espectador, destaca-se uma, ao mesmo tempo desconcertante e divertida, envolvendo Tim e Millie transando num banheiro. Como eles ficam presos é fácil de imaginar e Shanks não economiza nos detalhes sórdidos.

O australiano até se dispõe a incluir alguns bons sustos (o maior deles sendo um pesadelo de Tim com a peculiar morte da mãe), abandonando-os logo em seguida, mas não demora a ficar claro que toda a excentricidade de seu texto está a serviço de uma análise inquestionavelmente criativa de um relacionamento, cujo impacto é ainda maior pelo caráter metalinguístico oferecido por seus intérpretes.

Franco, acostumado a papéis que exploram sua ilusória cara de menino (ele acabou de completar 40 anos), pouco precisa se esforçar para transformar Tim num macho beta recheado de frustrações, ao passo que Brie compensa a pouca expressividade com uma composição segura e dominante, beneficiando-se da química com o marido para comandar uma dinâmica pulsante.

O script, no entanto, não é imune a eventuais lacunas e algumas ficam evidentes a ponto de incomodarem, como a ausência de desdobramentos após uma importante atitude de Tim e a rotina irregular de Millie. Falando em irregular, o tom da narrativa às vezes soa confuso na busca por borrar as fronteiras entre humor e horror.

Lá pela metade da projeção, quando a história começa a cobrar os foreshadowings (incluindo um irretocável uso da Arma de Tchekov), Shanks é inteligente ao usar a previsibilidade do roteiro a seu favor. Após passar dois terços gerando expectativa, o realizador enfileira momentos que oferecem exatamente o que o público espera, encaixando as peças do quebra-cabeça e, consequentemente, produzindo um efeito tão satisfatório quanto divertido (as maiores gargalhadas ficam para o final).

Coroando assim uma viagem tresloucada pelos meandros de um casamento que se presumia natimorto, mas que estava destinado a comprovar que “o que Deus uniu, o homem não separa”.
NOTA 7,5