Brasileiro 'Os Enforcados' faz excelente mistura de 'Lady Macbeth' com 'Fargo
- Guilherme Cândido
- 12 de ago.
- 4 min de leitura
*Crítica publicada durante o Festival do Rio 2024

A beleza de festivais, especialmente este do Rio, maior vitrine do Cinema Brasileiro, é ser surpreendido com preciosidades que só acontecem em eventos assim. Como acompanhar em tempo real a transformação de realizador brilhante, em autor genial. E não digo isso como um deslumbre por ter tido a oportunidade de conhecer pessoalmente o diretor e roteirista Fernando Coimbra, responsável pelo excepcional O Lobo Atrás da Porta. Mas o debate que sucedeu a sessão deste Os Enforcados deixou claro que o paulista é muito mais do que um profissional que merece nossa atenção. Vê-lo revelar suas inspirações e explicar como concebe essa mais nova joia do nosso Cinema escancara seu brilhantismo, alguém que não apenas sabe o que quer, mas como fazer o que quer, levando às telas exatamente o que planejou.
Os Enforcados é praticamente uma continuação temática de O Lobo Atrás da Porta, tirando a ambientação do subúrbio carioca e transportando-o para a Barra da Tijuca. Para quem vive fora do Rio de Janeiro, trata-se de um bairro nobre, relativamente novo. Planejado como um reflexo dos zoneamentos planejados estadunidenses (especialmente os da Flórida), tendo atraído no início os chamados “novos ricos”, com uma população que passou a contar com jogadores de futebol, artistas e até contraventores, objetos de estudo da trama escrita pelo próprio diretor.

Irandhir Santos (o eterno Fraga de Tropa de Elite 2) é Valério, membro de uma família de bicheiros liderada pelo seu tio, Linduarte (Stepan Nercessian, com sua faceta malandra muito bem aproveitada), com quem possui rusgas após a misteriosa morte de seu pai. Vivendo com luxo à beira da Praia da Barra, ele é casado com Regina (Leandra Leal), que faz questão de supervisionar a custosa reforma do apartamento onde vivem, até Valério anunciar que não há mais dinheiro para continuá-la. “Como você está quebrado, se o Brasil está em crise e o teu negócio vive de crises?”, ela pergunta no mesmo tom que fará o espectador dar boas gargalhadas ao longo da projeção.

Mas Os Enforcados é um thriller, não uma comédia. E o tal negócio envolve, claro, o já citado Jogo do Bicho, mas também aparelhos caça-níqueis, além de destinar boa parte do orçamento para autoridades políticas e policiais (atendendo a pseudônimos como Capitão América e Vigilante Rodoviário). Um dos maiores méritos da produção reside em mostrar que os bicheiros não são flor que se cheire, dispensando a tolerância concedida a esses gângsteres na década de 90. Para não restar dúvida, não demora até que o casal protagonista tente solucionar seus problemas financeiros cometendo um arriscado homicídio. Só que a decisão, impulsiva e descuidada, desencadeia um efeito dominó marcado por violência e desconfiança.

Ícone do Cinema Brasileiro, tendo estrelado obras memoráveis como Tatuagem, O Som ao Redor, Aquarius e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, Irandhir Santos aproveita mais uma oportunidade de criar um personagem complexo. E acompanhar as nuances dramáticas de Valério é um espetáculo à parte, ilustrado por Coimbra através de camadas destrinchadas aos poucos. Uma delas reside no jogo erótico entre o homem e sua esposa, adepta de um fetiche que obriga o marido a encarnar o papel de invasor e agressor. É um artifício inteligente no qual Valério é obrigado a assumir uma função diferente daquela que desempenha na realidade. “Seu marido é um frouxo!”, ele diz para Regina. E, em alguns momentos, é mesmo, algo que de alguma forma motiva suas intenções. Nessa fantasia, cabe à Regina a submissão, uma passividade estranha em seu relacionamento com Valério, vide o posicionamento que assume (é dela a ideia de matar). Aos poucos essa dinâmica muda, com fantasia e realidade trocando de lugar dentro da história à medida que a vida do casal, aos poucos, desmorona.

Leandra Leal, estrela de O Lobo Atrás da Porta, entrega-se à Regina com ferocidade e encanta com a habilidade de alcançar cada nuance exigida pela personagem. O prazer de ver o arco dramático da mulher e como suas atitudes impactam a trama e os outros personagens só não é mais especial do que ver a veterana Irene Ravache brilhar intensamente como a mãe de Regina, dando sinais divertidos de que talvez não seja tão diferente assim da filha, mesmo que fique chocada com a estupidez de algumas decisões tomadas pela mesma.

Tecnicamente impecável, a produção ainda se beneficia de um design de som primoroso, trabalhando em conjunto com a trilha sonora para acompanhar a escalada da tensão (aproveitar os ruídos da obra para criar a atmosfera de suspense merece aplausos). Da mesma forma, a precisão da montagem resulta num ritmo absolutamente impecável, gerando aquela sensação agridoce quando uma grande história se encerra sem nos darmos conta disso.

Falando em agridoce, um ponto realmente negativo, infelizmente é a mixagem de som, já que em determinados momentos fica difícil compreender alguns diálogos, principalmente nas sequências que se passam no barracão da escola de samba, com o ruído dos instrumentos abafando conversas (as legendas em inglês da cópia exibida salvaram o dia).

Culminando num terceiro ato que enfileira reviravoltas mais impressionantes pela forma como se apresentam (e sem abandonar a lógica) do que pelos eventos em si, Os Enforcados mistura Lady MacBeth e Fargo numa experiência tipicamente brasileira e que será difícil de esquecer.
NOTA 9