Festival do Rio 2025 | Dia 1
- Guilherme Cândido
- há 15 horas
- 7 min de leitura
Me Ame Com Ternura (Love Me Tender, França/Luxemburgo)

Enganou-se quem pensou que Vicky Krieps viraria figurinha repetida em Hollywood após sua performance estelar no excelente Trama Fantasma (2017), de Paul Thomas Anderson. Aí invés de assinar um contrato multimilionário com algum estúdio ou entrar para os Vingadores, a atriz luxemburguesa acabou construindo uma bela carreira no Cinema Europeu, aparecendo com frequência em Festivais mundo afora.
Falando em festivais, ela estava ótima em Corsage (2022), longa sobre a rainha Sisi que desembarcou no Festival do Rio 2022. Três anos depois, Krieps está de volta ao banquete cinematográfico carioca, dessa vez com Me Ame Com Ternura, da diretora Anna Cazenave Cambet. Também escrito por Cambet, o roteiro é uma adaptação da autobiografia de Constance Debré, que assim como a protagonista Cleménce Delacourt vivida por Krieps, largou a carreira como advogada para virar escritora.
Cleménce já inicia a projeção nos informando de sua separação de Laurent (Antoine Reinartz, de 120 Batimentos Por Minuto), com quem mantém uma relação saudável ao ponto de saírem esporadicamente para tomar um café. O homem, sempre sorridente, chega a ensaiar roubar um beijo da ex-esposa em certo momento, mas é repreendido. O que mantém os dois ainda ligados é Paul (Viggo Ferreire-Redier), filho de oito anos cuja guarda é informalmente dividida (um divórcio nunca foi pedido para oficializar o fim do casamento).
Tudo muda quando Clémence resolve contar ao ex-marido que passou a se interessar por mulheres, o que é recebido com uma compreensão que mais tarde se revela pura falsidade. Covardemente, Laurent inicia um processo para afastar Paul cada vez mais da mãe, coagindo o menino e iniciando uma Guerra Fria até finalmente entrar com uma solicitação de guarda unilateral na Justiça. A alegação? Incesto e Pedofilia, incluindo uma carta supostamente escrita por Paul alertando para a “loucura” da mãe. O que antes eram apenas sinais, acaba ficando claro quando a corte parisiense resolve atender Laurent, acendendo o pavio de um barril de pólvora do qual Clémence penará para sair.
Inicialmente um retrato indigesto da homofobia estrutural, Me Ame Com Ternura rapidamente se transforma numa batalha jurídica que dispensa teatralizações. Nada de sequências no tribunal ou discursos inflamados. Ao filme interessa apenas mostrar de forma nua e crua como funciona um sistema já impactado pela burocracia sob o comando de figuras preconceituosas, advogando sob um escancarado “pânico heterossexual”, como é dito por alguém em determinado momento.
Krieps não precisa de momentos grandiosos para brilhar, pois apenas seu rosto é suficiente para transmitir um vórtice de emoções. Sua melhor cena é aquela em que Clémence finalmente consegue se reencontrar com o filho, dando um longo abraço enquanto são observados de longe por funcionárias do governo escaladas para mediar a situação (apenas um lembrete de como homossexuais são vistos como perigosos para a sociedade).
O mais frustrante para a heroína, por outro lado, é constatar que, mesmo contando com o apoio de todos os conselheiros tutelares, psicólogos e assistentes sociais que passam pelo caso, ela ainda é vítima da burocracia, que por sua vez é a ferramenta mais afiada ostentada por Laurent.
Já para o espectador, a frustração se dá pela forma dispersa com que a narrativa se desdobra ao longo de suas inchadas duas horas e catorze minutos de projeção, especialmente a participação relâmpago de Monia Chokri (A Natureza do Amor) que surge como um vislumbre de futuro e vai minguando até encontrar um desfecho ríspido. Fotografado com cuidado por Kristy Baboul, a produção não hesita em dar o tempo necessário para cada plano, incluindo longas tomadas que captam a densidade dramática de Vicky Krieps, obtendo altas recompensas.
Incapaz de resistir ao impulso de tocar a música de Elvis Presley que dá nome à obra e oferecendo uma justificativa para a narração em off que soa tão plausível (a protagonista está escrevendo sobre suas experiências), quanto recompensadora (descobrimos mais sobre sua personalidade), Love Me Tender, no original, é mais um acerto de uma atriz cada vez consolidada na Europa.
NOTA 7,5
Reconstrução (Rebuilding, Estados Unidos)

Josh O’Connor está em grande fase. Após despontar em O Reino de Deus (2017), o ator britânico vem aparecendo em filmes de destaque, como La Chimera (2023), Lee (2023) e o extraordinário Rivais (2024). Não por acaso, tem se tornado requisitado em Hollywood. Tanto que só esse ano está listado em quatro produções (Pedro Pascal que se cuide). Um dos dois filmes estrelados por ele a desembarcar no Festival do Rio é este Reconstrução (o outro é The Mastermind, de Kelly Reichardt), novo trabalho do cineasta Max Walker-Silverman, também responsável pelo roteiro.
A trama se passa no Vale de San Luis, no Colorado, onde o jovem vaqueiro Dusty (O’Connor) nasceu e foi criado. Lá ele mantém um relacionamento distante com Ruby (Meghann Fahy, do fraco Drop: Ameaça Anônima), com quem possui uma filha, a encantadora Callie-Rose (Lily LaTorre). Tudo muda quando um incêndio de grandes proporções devasta as florestas locais, fazendo com que Dusty e tantos outros percam tudo com o qual viveram. Perdido, ele vagueia à procura de emprego até ser realocado num trailer pela FEMA (agência estadunidense que presta socorro a vítimas de desastres naturais). Decidido a se mudar para Montana, onde acredita que poderá cuidar de um rancho ao lado da prima, ele mal percebe que essa pode ser uma oportunidade de se reconectar com aquilo que realmente importa na vida.
Dessa forma, o título abre margem a múltiplas interpretações, com o ponto de convergência entre elas sendo o envolvimento com a comunidade. Afinal, no parque de trailers vivem outras vítimas como Dusty. Algumas até em situações piores. Já Ruby insiste para que ele se aproxime da filha, que o idolatra mesmo sem receber a atenção que merece. Lily LaTorre, aliás, é um achado preciosíssimo, conferindo honestidade e densidade dramática dignos de uma adulta.
Josh O’Connor compõe o protagonista como um rapaz humilde, de poucas palavras e jeito modesto. Caminhando a passos curtos, sempre curvado e ocasionalmente olhando para baixo, Dusty parece manifestar fisicamente toda dor que sente por ter perdido o que acredita ter sido o legado da família. Chega a ser impressionante como o ator consegue transmitir o vazio de seu personagem com apenas um olhar.
O grande destaque do filme, por outro lado, é a atmosfera aprazível criada por Max Walker-Silverman que em muitos momentos lembra o igualmente caloroso Uma Noite no Lago, exibido no Festival do Rio 2022. Walker-Silverman não se importa de alongar os planos, permitindo-se o tempo que for necessário para desenvolver sua narrativa com paciência e profundidade. Há espaço para todo o elenco brilhar, mas Kali Reis merece créditos por imbuir humanidade à Mila, que viu o marido ser engolido pelas chamas. Brilhante na série antológica True Detective: Terra Noturna, a ex-boxeadora é outra em franca ascensão, escolhendo projetos cada vez melhores e mais ambiciosos.
Inevitavelmente estabelecendo um paralelo com os recentes incêndios que assolaram Los Angeles, Reconstrução se apresenta como um atestado de humanidade em tempos tão belicosos, algo refletido pela ensolarada fotografia de Alfonso Herrera Salcedo (também de Uma Noite no Lago), tirando bom proveito da paisagem árida do Colorado e seu relevo irregular. Por outro lado, a trilha sonora suave de James Elkington e Jake Xerxes Fussell ajuda a estabelecer o clima de calmaria, investindo em melodias à base de cordas que mantém o espectador num estado quase permanente de bem-estar.
Otimista até o último plano, Reconstrução é o feel-good movie que o povo de Los Angeles precisa no momento, pois além de vislumbrar um futuro, mostra que um voto de confiança à humanidade pode ser a chave para tornar a realidade menos dolorida.
NOTA 8
Nos Trilhos do Destino/Sonhos de Trem
(Train Dreams, Estados Unidos)

Chegando direto de Sundance, Train Dreams, no original, é o novo filme que o diretor Clint Bentley escreveu ao lado de Greg Kwedar, mesma dupla do bom Sing Sing, indicado esse ano ao Oscar. Apesar de ter sido legendado como Sonhos de Trem (tal qual o material de origem), a produção é intitulada Nos Trilhos do Destino de acordo com o IMDb, então para cravar o correto é mais prudente aguardar o posicionamento da Netflix, plataforma onde o longa será lançado no mês que vem.
Bentley bebe muito da fonte de Terrence Malick (Além da Linha Vermelha, A Árvore da Vida), proporcionando à narrativa uma conexão tão forte com a natureza que às vezes os personagens soam como meros adornos da própria história, o que não se distancia da proposta filosófica do roteiro, adaptado de um romance escrito pelo alemão Denis Johnson.
Joel Edgerton (visto recentemente na série Matéria Escura) empresta sua aura de homem comum a Robert Grainier, que durante a expansão ferroviária nos Estados Unidos, ganhou a vida fazendo trabalhos braçais na região que hoje é chamada de Washington. Acompanhamos toda sua trajetória, desde a infância difícil como órfão, passando pela descoberta do amor de sua vida, Gladys (Felicity Jones), até ser soterrado pelas inevitáveis tragédias da vida. Tudo com o bônus da narração de Will Patton (o Garrett da série Yellowstone), que faz mais do que ditar o tom lírico da obra, desvendando camadas de forma que os tronchos personagens jamais conseguiriam fazer.
A primeira metade da projeção flui maravilhosamente, equilibrando a solenidade do texto com situações genuinamente divertidas. Há uma sequência envolvendo um suposto cristão que começa como se fosse uma cena deletada de Forrest Gump (1994) e termina no estilo dos Irmãos Coen (O Grande Lebowski, Matadores de Velhinhas). Da mesma forma, William H. Macy, indicado ao Oscar por Fargo (1996) - dos Coen, veja só - nunca esteve tão vivaz, a ponto de desejarmos que a mera participação especial que faz, dure mais. Seu personagem segue a cartilha anterior, combinando seriedade e bom humor.
Da segunda metade em diante, especificamente a partir de um acontecimento-chave, o filme cai de rendimento, ficando à beira do precipício, mas agarrado à atuação potente de Edgerton, um intérprete que merece muito mais reconhecimento do que possui. É ele quem preenche os longos e excessivos silêncios que passam a aparecer com mais frequência à medida que nos aproximamos do final.
Como vem acontecendo em praticamente todos os projetos no qual aparece - Foi assim em Inferno (2016), Rogue One: Uma História Star Wars (2016), Os Aeronautas (2019) e em O Brutalista (2024), só para citar alguns exemplos -, a britânica Felicity Jones representa um ponto negativo, seja pelo sotaque artificial ou pela presença apática. Ao menos possui alguma química com Edgerton. Já a trilha sonora de Bryce Dessner (O Contador 2) transmite melancolia sem resvalar no sentimentalismo barato, o que é um alívio.
A fotografia deslumbrante do brasileiro Adolpho Veloso (Tungstênio), concebendo obras de arte a partir da paisagem bucólica do efervescente norte estadunidense e apostando na expressividade do protagonista nos momentos de maior introspecção é o destaque técnico desta produção que encerrou o primeiro dia do Festival do Rio 2025.
NOTA 7