Terror 'A Herança' é competente e traz frescor ao Cinema Brasileiro
Crítica publicada como parte da cobertura do Festival do Rio 2024
Muito se reclama, com alguma razão, sobre a escassez de filmes de gênero no Brasil, um Cinema que se enraizou no imaginário do espectador casual como dependente de comédias e histórias ambientadas em favelas. O cenário vem mudando nos últimos anos, não apenas com o investimento cada vez maior de plataformas de streaming, mas também através da onda de cinebiografias de estrelas da música brasileira. O que está difícil de mudar é a relação do povo brasileiro com a sua produção cinematográfica, mas essa é uma questão mais profunda, envolvendo dificuldades de distribuição, por exemplo. O Cinema Nacional vai além das neochanchadas globais, mas infelizmente, só tem o prazer de experimentar a pulsação de nossas grandes histórias, tratadas com o devido carinho e contadas com o primor técnico-narrativo que muitos desconhecem, quem vai a festivais e/ou quem consegue esperar para ver essas mesmas obras estrearem em bairros nobres e horários pouco atraentes nas demais praças.
A Herança é exatamente esse tipo de produção, concebida com esmero e amor por uma equipe dedicada e talentosa, qualidades que transparecem na tela. Um terror brasileiro de incontestável qualidade. Mas será que chegará ao demais brasileiros? Espero que sim.
Idealizado pelo carioca João Cândido Zacharias, o simpático diretor estreante que fez questão de apresentar seu filme para uma plateia heterogênea, agradecendo por saírem de casa para ver um filme de terror brasileiro, o enredo acompanha os namorados Thomas (Diego Montez, do bom O Sequestro do Voo 375) e Beni (Yohan Levy, de Em Nome da Honra). O primeiro, um estrangeiro com dificuldades para permanecer legal na Europa. O segundo, um europeu nato, tentando administrar a situação. O jogo vira quando Thomas é convidado para o enterro da avó no Brasil. Aqui, ele fica sabendo ter herdado uma enorme casa colonial, daquelas fáceis de se imaginar assombrada. Com direito a um lago particular e terra farta, o jovem inicialmente renega o sentimento de pertencimento, que aos poucos é encorajado pelas tias Victoria (Analú Prestes, de Avenida Beira-Mar, também exibido neste Festival do Rio) e Berta (Cristina Pereira, presente no fantástico A Vida Invisível). São elas que aparecem para receberem os amantes.
Enquanto Thomas se mostra cada vez mais seduzido pela hospitalidade das tias, Beni percebe algo estranho no ar, à medida que o passado do amado vem à tona.
O terror de casa mal-assombrada é um subgênero de tradição centenária, sabendo disso, o roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Fernando Toste (do bacana A Divisão), parte do pressuposto que o público conhece as regras do jogo, evitando perder tempo com explicações desnecessárias. Por outro lado, sente-se falta de uma atenção especial à geografia do lugar, elemento por vezes confuso dentro da narrativa. Ao invés de mostrar um pouco mais do casarão, a equipe de som se certifica de marcar território, apostando nos tradicionais rangidos e estalos da madeira antiga.
O ponto alto do projeto, no entanto, é a homogeneidade do elenco, composto também de membros extremamente comprometidos. Diego Montez é uma revelação, percorrendo o arco dramático de Thomas com precisão, da mesma forma que Yohan absorve bem o arquétipo do forasteiro. Beni torna-se peça fundamental por possuir um olhar de fora e, portanto, mais confiável da situação. E se Ana Carbatti (Um Tio Quase Perfeito 2) aproveita o tempo limitado de tela para encarnar o típico straight face (único personagem sério e responsável por levar os protagonistas à situação-chave), Prestes e Pereira não são menos do que excepcionais adições ao elenco, trazendo calor humano ao mesmo tempo que evocando um tom sombrio. Fechando o elenco, Gilda Nomacce, ícone do horror brasileiro, é homenageada com uma participação especial mergulhado no camp, fazendo jus à sua brilhante carreira.
Com referências pesadas ao horror italiano da década de 70 (o famoso Giallo), Zacharias mostra pleno domínio dos signos do terror, demonstrando inteligência ao evitar jump scares fáceis mesmo quando a oportunidade surge (quando alguém é visto encarando a parede). Aliás, os fãs do gênero talvez sintam falta de arrepios e sustos mais contundentes, embora haja uma parcela aceitável de imagens grotescas. Da mesma forma, a criação da atmosfera deve muito à trilha de Bernardo Uzeda, que mantém a narrativa refém de seus acordes grandiloquentes.
No final das contas, A Herança é um tipo de filme que não arrisca muito em sua abordagem do terror, cercando-se de elementos básicos, mas empregando-os de forma eficaz, oferecendo uma experiência tremendamente satisfatória. Que mais pessoas possam assistí-lo e comprovar a potência criativa do Cinema Brasileiro.
NOTA 7
Parabéns pela crítica