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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Triângulo da Tristeza" utiliza a riqueza como base para sátira mordaz


Vencedor da Palma de Ouro em 2017 por The Square – A Arte da Discórdia, sátira feroz que ainda recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional, o cineasta Ruben Östlund entrou para o seleto grupo daqueles galardoados duplamente com a honra máxima do Festival de Cannes através de Triângulo da Tristeza, posicionando-se ao lado de mestres como Francis Ford Coppola, Ken Loach e os Irmãos Dardenne apenas cinco anos depois. A produção, aliás, fez Östlund ser lembrado pela Academia novamente, mas dessa vez também nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Roteiro e Melhor Filme.


Trocando o mundo da Arte de The Square por um ambiente ainda mais exclusivo (o dos ricaços), Ruben Östlund volta a analisar o comportamento humano num cenário de privilégios, como se o iate no qual a história se desenvolve representasse um imenso laboratório e seus passageiros fossem as cobaias. Nesse contexto, o diretor e roteirista sueco, especialista na arte do desconforto, cria situações capazes de despertar o que de fato habita o interior daquelas pessoas, explorando-as além dos limites cômodos. Note, por exemplo, como ele lança mão de artifícios para garantir essa sensação: Povoando a paisagem sonora com ruídos semelhantes a batidas de porta na trilha sonora e choros de bebês, o filme ainda inclui pequenas interrupções durante os diálogos, como portas de elevador se fechando sobre um personagem.

Seguindo nessa linha de análise, Ruben Östlund não se preocupa em facilitar a identificação do público com seus personagens, tratando-os como verdadeiros objetos de seus experimentos sociais (criar laços afetivos com ratos de laboratório dificultaria o trabalho dos cientistas, afinal). Mais do que isso, Triângulo da Tristeza nos apresenta a figuras desagradáveis ao ponto de impedir que o espectador sinta remorso não apenas por se divertir com o sofrimento delas, mas por desejar que elas sofram.

Utilizando o mundo da moda para estabelecer o protagonista e o ambiente privilegiado que integra, Östlund aproveita os primeiros minutos de projeção para debochar de marcas famosas, ao mesmo tempo em que alfineta a indústria fashionista. Numa sala abarrotada de jovens modelos aguardando serem chamados para uma audição, o gelo é quebrado quando um blogueiro surge em cena fazendo a seguinte pergunta a um deles: “Seu pai aprova você trabalhar num ramo em que o homem ganha três vezes menos do que a mulher e há um monte de homossexuais te cantando o tempo todo?”. A introdução, perfeita ao dar um aperitivo do tom ácido com que Östlund conduzirá sua narrativa, é complementada ironicamente por um desfile que exibe num telão frases de efeito vazias que ressaltam os perigos das mudanças climáticas e clamam por igualdade, como se estas fossem preocupações reais dos envolvidos, ecoando a personalidade do próprio protagonista.

Carl, vivido por Harris Dickinson (o vilão de Um Lugar Bem Longe Daqui), não demora a revelar seu caráter, provocando uma tola discussão com Yaya (Charlbi Dean, falecida em agosto por conta de uma doença súbita) sua namorada e parceira de negócios, sobre o pagamento da conta de um restaurante. Afirmando que “não se trata de dinheiro”, fica mais do que claro que seu maior interesse é justamente o dinheiro, que por sinal é o fio condutor de Triângulo da Tristeza, utilizado como lupa ao revelar a verdadeira natureza humana, especialmente daqueles que vivem com mais do que precisam. Se o poder corrompe, o dinheiro é apenas mais uma forma de exercê-lo.

Aos olhos de Östlund, aquela classe social, uma parcela minúscula da população mundial, é composta majoritariamente por pessoas mimadas, arrogantes e, por isso, solitárias, que acreditam piamente no poder do dinheiro como meio para chegar a qualquer fim, a ponto de filtrarem relações sociais pelo prisma da riqueza. Não é à toa que em certo momento da projeção, um personagem, visando se aproximar de duas jovens, resolve demonstrar sua gratidão por uma atitude banal se oferecendo para presenteá-las com um Rolex (“eu sou muito rico!”, ele brada orgulhosamente). E quando comemora um êxito ou deseja cumprimentar alguém, “Sirva seu champanhe mais caro para aqueles cavalheiros!” é dito com uma altivez tão espontânea quanto pacóvia, sem perceber que os frequentadores daquele espaço talvez sejam ainda mais endinheirados do que ele. Um deles, inclusive, gaba-se por ter feito fortuna “vendendo merda”.

Zlatko Burić interpreta Dimitry, o tal “Rei da Merda” (apelido que não se envergonha de revelar), como uma referência direta ao seu papel mais famoso, o do magnata russo que viveu no blockbuster 2012. Também nascido na ex-União Soviética, Dimitry é um oligarca do tipo fanfarrão, retratado por Burić (que na verdade é croata) como aquela típica caricatura que os estadunidenses adoram fazer de seus rivais históricos, vistos como socialistas falastrões e beberrões. Essas características, aliás, contribuem para a construção de uma sequência divertidíssima envolvendo um embate entre Dimitry e Thomas, o Capitão do navio (detalhes adiante).

Em mais uma atuação esnobada pelas grandes premiações, Woody Harrelson compõe Thomas também como um estereótipo: o Capitão é um ianque clássico, optando por hambúrguer e batatas fritas num jantar sofisticado (“não sou chegado a refeições chiques”, ele justifica), por exemplo. No entanto, o roteiro aproveita as caracterizações de Harrelson e Burić para subverter as expectativas do público, incluindo um monólogo de Thomas admitindo algumas críticas sofridas por seu país. Pois apesar de sustentarem personas previsíveis, os dois acabam surpreendendo ao se posicionarem politicamente, definindo-se como um americano comunista e um russo capitalista.

Num debate de ideologias invertidas, os dois trocam citações de políticos e personalidades com o intuito de atacarem as convicções do outro: “Como definir um comunista? Quem leu Marx e Lenin. E um anticomunista? Quem entendeu Marx e Lenin!”, debocha Dimitry antes de arrematar com o autor: “Ronald Reagan!”. “O último capitalista que enforcaremos será aquele que nos vendeu a corda... Karl Marx!”, rebate Thomas. Por outro lado, o momento para tais provocações, não poderia ser mais inadequado, já que enquanto discutem, o navio enfrenta uma enorme tempestade, fazendo com que a instabilidade da embarcação gere consequências pouco decorosas para os passageiros, enquanto estes jantam.

Extraindo humor através dos contrastes, Östlund é paciente ao desconstruir aos poucos a atmosfera refinada do restaurante do navio. Os garçons cambaleiam na hora de servirem os pratos e o balançar da embarcação começa a provocar náuseas nos passageiros. “Coma alguma coisa, pois o enjoo é pior de estômago vazio”, aconselha uma tripulante. O resultado é antecipável, mas a produção não economiza, proporcionando um espetáculo dantesco com vômitos descontrolados por toda a parte, num caos que faria inveja a Damien Chazelle em Babilônia, mas a escatologia de Triângulo da Tristeza passa muito longe de ser gratuita como no filme do diretor de La La Land. O que Ruben Östlund faz com perfeição é transformar esse show de horrores numa alegoria sociopolítica, com as meras mortais da equipe de serviços gerais tendo de limpar a sujeira dos mais ricos que, indiferentes à tempestade a sua volta, mantiveram seus hábitos luxuriosos.

Mas nesse universo pautado pelo luxo em excesso, até mesmo a classe trabalhadora tende a almejar o topo da pirâmide capitalista, como fica claro durante uma reunião dos tripulantes: a chefe dos funcionários alerta para o comportamento dos passageiros, mas lembra que eles poderão dar gorjetas volumosas, encerrando seu discurso ao puxar um mantra louvando o deus maior daqueles indivíduos (eles literalmente gritam “dinheiro!” em coro). É interessante notar, todavia, como não há um membro negro sequer na tripulação do Iate, ao passo que a casa de máquinas é composta exclusivamente por negros.

Perdendo força no terceiro ato, cujo capítulo promove uma mudança drástica na dinâmica e transforma Triângulo da Tristeza numa versão alternativa de O Senhor das Moscas, mas com milionários adultos no lugar das crianças, a produção segue um caminho natural ao propor uma discussão interessante: o que aconteceria caso houvesse uma inversão na hierarquia de classes? A tese de Östlund é defendida através da personagem Abigail (Dolly De Leon, excelente), funcionária da limpeza alçada a líder após um evento de grandes proporções sacudir a história. As críticas se expandem para um contexto em que ninguém escapa das garras do poder, refletindo a canção que abre a projeção. Nem mesmo a classe trabalhadora.


Funcionando como uma espécie de continuação temática de The Square – A Arte da Discórdia, Ruben Östlund faz de Triângulo da Tristeza uma sátira que debocha impiedosamente da elite econômica, mas que não perde de vista seus alvos favoritos: o ser humano e sua natureza corruptível.


NOTA 8,5

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