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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

'O Dublê' encanta com entretenimento à moda antiga


Os dublês desempenham um papel fundamental na Indústria do Entretenimento. São profissionais responsáveis por realizar proezas tão perigosas e complexas que acabam sendo arriscadas demais para a maioria dos atores. Apesar de garantirem a segurança dos astros durante as filmagens e realizarem a “parte legal” das sequências de ação, isto é, executando acrobacias, cenas de luta, capotagens e outras atividades que exigem habilidades específicas e treinamento especializado, não recebem o valor que merecem. Reflita: com exceção de Tom Cruise, quem você imaginaria ser capaz de performar os atos descritos acima? Infelizmente, a importância é desproporcional ao reconhecimento, mesmo que os esforços dos dublês sejam cruciais para o sucesso dos blockbusters.

Isso ocorre, em parte, graças à falta de visibilidade pública de seu trabalho, tanto que sequer há uma categoria do Oscar voltada para a classe. Além disso, esses homens e mulheres que se arriscam não apenas pelo amor à Arte, mas também pelo nosso entretenimento, desaparecem na obscuridade para que estrelas recebam todo o crédito (e muitas vezes mentindo para garantir a fama). Essa é uma problemática que não costuma atrair a cobertura da imprensa, o que dificulta ainda mais sua solução.

Pensando nisso, o ex-dublê e agora cineasta David Leitch, resolveu juntar, literalmente, todas as questões relatadas acima e transformar num longa-metragem que funciona não só como um passatempo cheio de personalidade, mas também como uma ode apaixonada aos dublês.

O que nem todo mundo deve saber é que The Fall Guy, no original, adapta a série homônima que fez sucesso na década de 80, chegando ao Brasil sob o título Duro na Queda e recheando as tardes dominicais da Rede Globo. O programa foi criado pelo mesmo Glen A. Larson de fenômenos culturais como Magnum e A Super Máquina, apresentando Lee Majors (de O Homem de Seis Milhões de Dólares, outra série bem-sucedida) como Colt Seavers, um dublê que, nas horas vagas, também fazia as vezes de caçador de recompensas, sendo auxiliado em suas missões por Jody (Heather Thomas, que estrelou mais bombas do que deveria). Nesta versão cinematográfica, Colt é vivido por Ryan Gosling, enquanto Jody é interpretada pela britânica Emily Blunt, ambos indicados ao Oscar este ano (ele por Barbie, ela por Oppenheimer).

O roteiro assinado por Drew Pearce (Velozes e Furiosos: Hobbs e Shaw) chama atenção logo de cara por fazer bem-vindos aprimoramentos, especialmente em relação a Jody, uma mera ajudante de corpo escultural na TV e agora, no Cinema, uma mulher ambiciosa e com personalidade suficiente para questionar publicamente o comportamento de Colt, encarnado com altas doses de ironia e autodepreciação por Gosling, um ator que se tornou especialista nesse tipo de performance.

E se O Dublê funciona, em primeiro plano, como uma comédia romântica à moda antiga, muito se deve à química de seu casal protagonista. A produção, todavia, também se arrisca satirizando o noir ao colocar Seavers para investigar o desaparecimento de Tom Ryder (Aaron Taylor-Johnson, de Trem-Bala), estrela do qual era dublê até sofrer um acidente no set de filmagens. O caso, claro, se revela complexo demais para alguém como nosso herói improvável, que insiste em tentar solucioná-lo ao perceber uma ligação com o novo filme dirigido por Jody. É a oportunidade perfeita de se redimir e retomar o velho romance, afinal.

O principal ponto positivo do roteiro, no entanto, é também sua maior fraqueza, pois Drew Pearce explora sua inventividade além dos limites propostos pela trama, algo que já havia soçobrado Hotel Artemis, seu primeiro e único trabalho também como diretor. Se isso não chega a comprometer O Dublê, é porque, ao menos, é capaz de se escorar na metalinguagem para mostrar ao espectador que está ciente de suas limitações, fazendo com que a produção flerte com a comédia high-concept ao permitir que os personagens discutam elementos do próprio filme.

Se esse artifício funciona em determinados momentos para justificar o volume excessivo de exposição em alguns diálogos mais específicos, como aquele em que o vilão reconhece que parece ter saído de um filme de James Bond ou quando Colt critica um discurso que acabou de ouvir, em outros surge apenas como uma firula mesmo e a sequência da “tela dividida” revela a esporádica faceta presunçosa de Pearce, sem contar que esse mesmo recurso (embora não tão escancarado) foi popularizado por Harry e Sally: Feitos Um Para o Outro (1989), que por sua vez já era uma homenagem a Indiscreta (1958), rom-com de Stanley Donen (Cantando na Chuva) e protagonizado por Cary Grant e Ingrid Bergman.

No geral, porém, é difícil, por exemplo, escapar das risadas ao ouvir o coordenador de dublês interpretado por Winston Duke (o M’Baku de Pantera Negra) testar a cinefilia de Colt ao recitar frases famosas do Cinema (que vão de Rocky a Velozes e Furiosos). Aliás, o próprio Duke protagoniza uma das melhores passagens do filme ao derrubar criminosos empregando técnicas diferentes de luta baseadas em filmes de ação (nunca imaginei que ouviria alguém gritar “Daniel Day-Lewis” antes de repetir os movimentos do herói de O Último dos Moicanos enquanto executa um bandido).

E o cineasta David Leitch, cuja criatividade já havia sido comprovada em Deadpool 2, Atômica e no já citado Hobbs & Shaw, é extremamente bem-sucedido ao demonstrar um leque impressionante de opções na hora de conceber a ação. Abusa do neon e dos grafismos ao ilustrar o estado psicológico de Colt no primeiro ato e merece aplausos de pé por sincronizar uma já complicada sequência de ação (duas lutas num caminhão de lixo com a caçamba solta) aos versos da canção Against All Odds (Take a Look At Me Now) de Phill Collins (cantada num karaokê por Jody). Esse trecho, por si só já seria o bastante para ratificar o brilhantismo de Leitch e fazer valer o ingresso e é exatamente por isso que não entrarei em detalhes (sua experiência está intacta).

Mas o longa-metragem também mostra a posição dos dublês dentro da Indústria. Nesse aspecto, cabem alfinetadas a atores com delírios de grandeza (e que mentem sobre o fato de fazerem as próprias cenas de ação) e acenos bem-humorados a Tom Cruise (provavelmente o único astro a realmente executar as proezas de seus personagens), mas também há espaço para o deboche na hora de criticar o excesso de tela verde pelos grandes estúdios (o próprio filme esbanja efeitos práticos), sobrando até mesmo para Zack Snyder (o “ex-visionário” de Hollywood). Por outro lado, não só de provocações é feito o roteiro de O Dublê, que também faz questão de descortinar alguns detalhes curiosos da profissão, desde a incorporação de efeitos digitais até jargões e tiques (o “joinha” vira uma piada recorrente).

A atmosfera anos 80, construída através de referências pontuais e da trilha sonora matadora vai acertar em cheio o público-alvo do projeto, que não tem a menor vergonha de se apresentar como o tipo de entretenimento escapista que costumava arrastar multidões aos cinemas no final do século passado. Que isso seja embalado por uma carta de amor aos dublês é uma cortesia de David Leitch, o agradecido e orgulhoso realizador que cada vez mais se consolida como uma das vozes mais cativantes do blockbuster moderno.


Observação: Há uma sequência extra durante os créditos finais.


NOTA 7,5


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