"TÁR" apresenta Cate Blanchett em estado de graça
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"TÁR" apresenta Cate Blanchett em estado de graça

Atualizado: 30 de jan. de 2023



Ninguém poderia interpretar Lydia Tár como Cate Blanchett. Pode parecer uma frase boba, gratuita, sensacionalista até, mas foi o próprio produtor/diretor/roteirista Todd Field quem se certificou de sua veracidade. Numa entrevista recente para divulgar seu primeiro filme desde Pecados Íntimos de dezesseis anos atrás, o californiano afirmou que escreveu a protagonista de TÁR pensando em Blanchett, uma atitude ousada quando considerado o risco de a atriz duas vezes vencedora do Oscar não estar disponível no momento das filmagens, numa daquelas situações que só profissionais requisitadas como a australiana podem ostentar. Agendas sincronizadas à parte, a verdade é que Cate Blanchett não interpreta Tár, ela é Tár.

Poucas atrizes podem usufruir da oportunidade de ouro oferecida por um cineasta do calibre de Todd Field, pois Lydia Tár é uma personagem tão rica e bem escrita que provavelmente induzirá uma boa parcela do público ao erro de encará-la como uma pessoa real, como se TÁR fosse uma cinebiografia. No entanto, apesar de toda a história criada para sedimentar suas origens, Lydia Tár é fictícia e, portanto, um quadro em branco para Cate Blanchett, uma das melhores atrizes em atividade, pintá-lo com todos os tons de seu arcabouço de talentos.

O roteiro de Field tem início de forma inteligente ao colocar o espectador junto à plateia do que parece ser uma mistura de palestra e entrevista, na qual o escritor e ensaísta Adam Gopnik, esse sim real, membro da equipe da revista The New Yorker, traça um perfil de Lydia Tár apresentando-a como uma rara possuidora do EGOT (acrônimo que engloba Emmy, Grammy, Oscar e Tony, ou seja, os maiores prêmios da indústria do entretenimento) que construiu uma reputação sólida através de trabalhos prestigiados como musicista e acadêmica, já que além de ser a primeira mulher à frente da Orquestra Filarmônica de Berlim, também leciona na respeitada Juilliard, tradicional escola de música estadunidense. Assim, em poucos minutos descobrimos que Lydia Tár é, em vulgares palavras, uma lenda viva da Música, cuja presença no panteão é consenso mundial mesmo que sua escalada ao topo não seja exatamente cristalina para o público (o espectador incluso).

A partir do momento em que Todd Field cumpre, com ilusória facilidade, a tarefa de levar sua audiência a aceitar aquela figura desconhecida como o expoente técnico e artístico reverberado por seus pares igualmente fictícios, TÁR pode se concentrar em explorar a personalidade daquela que em última instância é um ser de carne e osso, trazendo para si o desafio de desmistificar, ainda que não completamente, aquela pessoa de talentos divinos. “A mulher por trás do mito”, por assim dizer. E é precisamente nesse ponto que Cate Blanchett arregaça suas mangas e sobe ao palco (literalmente) para iniciar seu recital, construindo Lydia como uma mulher consciente da posição que ocupa, mas que jamais se vangloria disso. Ela pode até desfrutar das regalias que tem, mas não perde a humildade de vista, característica que naturalmente é evidenciada através de um humor até certo ponto surpreendente, demolindo a aura pernóstica que costuma envolver esse tipo de personagem.

A erudição de Lydia Tár não habita suas palavras, como alguém pode vir a julgar equivocadamente. Como membro de uma classe presumidamente superdotada (senão intelectualmente, emocionalmente; daí a verve artística), a maestro - ela recusa a forma feminina - trata seus pares como iguais, nunca inferiores, permitindo-se uma elegância que ao invés de sugerir arrogância, revela um respeito somente equiparado à sua educação, algo facilmente identificado na dicção calma e controlada de Blanchett, avessa ao histrionismo (algo impensável para Tár).

Pois TÁR (o filme, como indica a grafia em caixa alta) também versa sobre o tempo, numa ambivalência compartilhada por Tár (a personagem), cujo ofício é autointitulado como o de alguém que necessita dominar o tempo, um esforço que se estende à sua própria vida e sua eterna busca pelo controle, especialmente do tempo, a quem atribui sua filosofia de vida. Não por acaso, o roteiro inclui uma série de passagens que buscam materializar o conflito que passa a ser enfrentado pela mulher (o metrônomo que liga sozinho no meio da noite, obrigando-a a interrompê-lo). Para alguém tão acostumada a ter o controle de tudo, ver o tempo se esvair por suas mãos é um sinal indefectível do desequilíbrio que tão constritamente teme.

Alguém com uma imagem tão ilibada como Tár poderia se dar o luxo de julgar a reputação alheia, como faz um aluno ao se recusar a tocar Bach. Ela, no entanto, discursa sobre a necessidade de separar o artista de sua arte, em palavras posteriormente contrariadas por um mentor e que ela não faz questão de contra argumentar (“se fôssemos levar isso em consideração, não ouviríamos ninguém”). São momentos complementares e que parecem se resolver imediatamente sem maiores intercorrências, mas que se mostram narrativamente premonitórios à medida em que TÁR se desenvolve como um estudo de personagem sob o prisma da cultura do cancelamento.

A ex-aluna, que chega ao espectador como “uma mulher problemática” nas palavras da própria protagonista, é apenas um sinal do que está por vir. Um vislumbre da verdadeira Tár descortinada quando se percebe que a tal Krista é um sintoma recorrente da doença que acomete aquela mulher inicialmente inatingível. Quando surge uma jovem violoncelista promissora, os paralelos tornam-se indissociáveis e Krista, que jamais tem seu rosto revelado, é absorvida por aquela que vem a ser mais uma peça do complexo quebra-cabeça chamado Lydia Tár. Não que o roteiro faça questão de julgá-la, pois fica evidente que tal papel é transferido para nós espectadores. A jornada aqui é de desconstrução, acompanhando Lydia Tár em sua trajetória do apogeu para o fundo do poço, da morada dos deuses, para o inferno do escracho público.

Tecnicamente, a produção reflete essa decadência moral e psicológica da personagem, aos poucos trocando os suntuosos cenários dos teatros e auditórios europeus por ambientes rústicos e empobrecidos. A fotografia, nunca saturada demais, permanece imutável frente aos acontecimentos, como se fosse o único elemento a verdadeiramente ecoar o interior de Tár como indivíduo. O véu acinzentado que insiste em cobrir os interiores claramente dessaturados de Berlim é complementado por um clima hostil (subjetiva e praticamente) no terceiro ato quando o céu insistentemente nublado irrompe numa chuva torrencial que acaba de vez com o glamour de Lydia, mesmo que ela nunca tenha demonstrado importar-se de fato com a opulência que lhe acompanhava.

Também há espaço para sutilezas e a mais notável de todas talvez seja o momento em que Lydia, contrariada diante de um evento desnorteador, resolve extravasar seu tumulto interior numa academia de boxe. A sacada, todavia, reside na forma como a mulher desfere seus golpes no saco de pancadas, no ritmo da quinta sinfonia de Beethoven, ilustrando como até em momentos mais primitivos a Música (produto do controle do tempo/ritmo) rege o comportamento de Tár. E o som, ápice técnico de uma produção que já se mostrava superlativa no âmbito criativo, contribui para guiar nosso entendimento da psique de Lydia. Seja por meio da supracitada sequência de boxe ou pelas espetaculares passagens musicais, o departamento sonoro cumpre com louvor a intrincada missão de dar materialidade ao momento de descontrole emocional da maestro. O já citado som do metrônomo, o zumbido advindo da geladeira e outros elementos sonoros são sempre justificados diegeticamente, mas ganham vida mesmo na significação projetada (ou deduzida) pelo espectador.

Por fim, Todd Field executa a proeza de conduzir o filme com a mesma destreza exibida ao escrevê-lo. A prova definitiva de que o cineasta domina a mise-en-scène, por exemplo, é a longa cena sem cortes em que, durante uma aula, Tár assume diferentes posições de acordo com o estágio do debate que mantém com um aluno, numa espécie de xadrez verbal encenado com perfeição. Começando a frente da turma (de costas para nós), ela se movimenta livremente pelo cenário, sendo seguida pela câmera por diferentes ângulos até finalmente se aproximar ao ponto de quase encostar seu rosto na lente, no exato instante em que conclui o processo de destruição da argumentação do jovem. É uma criação cuidadosa que exige disciplina por conta de Field e Blanchett, ilustrando a paciência e a inteligência de Tár enquanto professora.

Paciente e complexo como sua protagonista, TÁR é uma experiência densa e fascinante capitaneada por uma artista no auge de sua forma, estabelecendo seu diretor, de uma vez por todas, como um dos grandes nomes de sua geração mesmo tendo apenas três filmes em seu currículo. Que Todd Field não demore mais dezesseis anos para lançar seu próximo projeto.


NOTA 8,5


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