Barry Jenkins flerta com o maniqueísmo em "Se a Rua Beale Falasse"
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Barry Jenkins flerta com o maniqueísmo em "Se a Rua Beale Falasse"

Quando se revelou ao mundo através do ambicioso Moonlight: Sob a Luz do Luar (vencedor do Oscar de Melhor Filme no ano passado), Barry Jenkins provou ser um cineasta crítico, que alfineta o preconceito institucionalizado, mas que também sabe evocar o lúdico, trabalhando as cores como poucos na atualidade. Se Moonlight tratava com realismo a jornada de desamor de seu protagonista, Se a Rua Beale Falasse, novo projeto de Jenkins, toma um rumo oposto, abordando a história de um amor inabalável, mas com fortes tintas de denúncia.


Com um elenco afiado, Jenkins divide a narrativa em duas linhas temporais: uma que retrata o cotidiano do casal separado e outra que volta no tempo através de flashbacks que fazem uma retrospectiva desse relacionamento. Repetindo a equipe técnica de seu filme anterior, Jenkins volta a exibir um olhar apurado para a o visual da narrativa: investindo pesado na relação das cores com o ambiente, quase todas as cenas possuem elementos que conversam entre si, desde o figurino verde de um personagem que é ecoado por cortinas do mesmo tom até os quadros corais que são espelhados pela decoração de um aposento. Esse valor estético engrandece a atmosfera do filme e contribui para estabelecer o tom lúdico tão quisto por Jenkins e sua equipe desde Moonlight.


Alternando o romance entre Tish (KiKi Layne) e Fonny (Stephan James) com fotos cruas dos anos 60 (época em que o filme se passa) que ilustram a repressão policial a negros, o roteiro, adaptado por Jenkins a partir do livro de James Baldwin, assume desde o início uma postura crítica ao preconceito, aqui representado pela injusta prisão de Fonny, justificada pela represália de um policial racista e mal intencionado (Ed Skrein, o Francis de Deadpool).


Esse tom pesado é conduzido por Jenkins com a segurança de alguém que sabe o que está fazendo. Entretanto, ao povoar a narrativa com um elenco composto majoritariamente por negros, o cineasta assume um problema delicado, à medida que percebemos que quase todos os personagens caucasianos são encarados como figuras malignas, caricatas, ou ambas, como o oficial supracitado, encarnado por um Ed Skrein extremamente artificial.


Melhor sorte tem o elenco principal, que vê em KiKi Layne e Stephan James seu maior destaque. Se este último consegue transmitir toda a bondade de seu Fonny apenas através de um olhar gentil e sincero, Layne concebe Tish como uma mulher frágil, mas não o bastante para perder uma discussão acalorada, por exemplo. Essa discussão, aliás, revela-se um dos pontos altos da narrativa, com uma sucessão de frases secas e disparadas com rispidez e quase que imediatamente.


Nesse momento específico, Se a Rua Beale Falasse faz uma pausa nas críticas ao racismo para jogar luz na questão do fanatismo religioso, aqui representado pela figura da mãe do rapaz preso, interpretada por Aunjanue Ellis como uma mulher tão detestável quanto radical. Ela não hesita, por exemplo, em amaldiçoar a filha do casal principal (que ainda nem nasceu), apelando para frases que destoam dos reais significados bíblicos, exalando um ódio quase insano (e a agressão que acaba, infelizmente, motivando, serve também para humanizar os integrantes de ambas as famílias).


E por falar em humanidade, Regina King (série The Leftovers), como a mãe de Tish, tem a oportunidade de mais uma vez mostrar todo o seu talento, merecendo aplausos pela sequência onde sua personagem confronta a mulher que denunciou seu filho. A angústia de estar diante de uma situação fora do seu controle e o desespero por não ser capaz de revertê-la, tornam-se palpáveis graças à brilhante performance de King, desde já, merecedora do reconhecimento na temporada de premiações.


Beneficiando-se de mais um ótimo trabalho do compositor Nicholas Brittel (também de Moonlight), Se a Rua Beale Falasse evita o tradicional clichê de usar raps ou obras de hip-hop para embalar a narrativa, optando por uma trilha mais melódica e que também é capaz de acompanhar os momentos mais intensos, recuperando-se de um início ostensivo.


Enquanto isso, o diretor de fotografia James Laxton, em sintonia com o universo cromático estabelecido por Jenkins, aproveita para criar planos esteticamente belíssimos, não só pelos enquadramentos sofisticados, mas também pela excepcional iluminação utilizada em cena (note o tom azulado que domina a sequência do restaurante).


Voltando a investir em frases fortes (“esse país não gosta de preto”), Barry Jenkins faz o retrato fiel de uma época conturbada dos EUA, traçando um paralelo com a atualidade que evidencia a falta de evolução de uma sociedade onde o preconceito racial já está enraizado. Não chega a ser envolvente ou marcante como Moonlight, mas é relevante o bastante para mostrar que não será através de discursos de ódio que as coisas mudarão e seu diretor faz questão de frisar que o amor pode e deve prevalecer.


NOTA 7,5


Crítica originalmente publicada durante o Festival do Rio 2018

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