Burocrático, "Till - A Busca Por Justiça" é salvo por Danielle Deadwyler
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Burocrático, "Till - A Busca Por Justiça" é salvo por Danielle Deadwyler


Ao longo da história, os afro-americanos tiveram de batalhar dobrado pela igualdade de direitos e algumas personalidades tiveram papeis preponderantes nessa luta. Uma delas foi a ativista Rosa Parks (1913-2005), que em 1955 ganhou destaque mundial após se recusar a ceder seu lugar no ônibus a um homem branco. Tal atitude, inclusive, levou ao histórico Boicote aos Ônibus de Montgomery, liderado por Martin Luther King Jr. (1929-1968), vencedor do Prêmio Nobel da Paz e maior símbolo no combate à segregação racial. Outra figura proeminente foi Mamie Till (1921-2003) que aos 32 anos teve a coragem de ir até o retrógrado Mississippi para recuperar o corpo do filho, assassinado brutalmente aos 14 anos, e garantir seu velório em Chicago, sua terra-natal. Longe de casa, Mamie acabou descobrindo um mundo que ela só acompanhava pela televisão e decidiu agir.

Roteirizado pelos estreantes Keith Beauchamp e Michael Reilly ao lado da nigeriana Chinonye Chukwu (Clemência), em seu segundo longa-metragem também como diretora, Till – A Busca por Justiça apresenta Mamie como uma mulher que, apesar de manter uma postura sempre firme para suportar os olhares que recebe (ela chama atenção por ter seu próprio carro, por exemplo), nutre uma forte ligação com o filho Bo, com quem vive confortavelmente na Chicago de 1955 graças à pensão que recebe pela morte do marido na Segunda Guerra e como a única mulher negra a trabalhar num escritório da Força Aérea. Já Bo é vivido por Jalyn Hall (Space Jam 2: Um Novo Legado) como um jovem alegre e cheio de energia, contagiando a todos à sua volta com sua simpatia. Amoroso e sempre sorridente, não fica difícil de imaginar o porquê de todos gostarem de sua companhia, especialmente Mamie, que, tratando-o como um verdadeiro tesouro, tenta protegê-lo do mundo a todo custo.

Por isso, Mamie inicialmente resiste ao pedido de Bo para viajar com os primos e um pastor ao Mississippi, justamente um antigo estado confederado. Só depois de ouvir o apelo de sua mãe, vivida pela grande Whoopi Goldberg em uma rara e breve participação especial, Mamie cede, aproveitando para fornecer uma bateria de conselhos ao jovem: “Não arrisque olhá-los do jeito errado!”, ela começa antes de emendar um impactante “seja pequeno lá”, tentando prepará-lo para o choque de realidade que terá em território sulista. A partir do momento em que Bo embarca feliz no trem rumo às sonhadas férias com os primos, Mamie mergulha num cotidiano de apreensão, preocupada com a estadia do precioso filho numa terra hostil. “Não quero que ele se veja como aquelas pessoas nos veem”, ela justifica.

Como mãe de Bo, ela já antecipa que aquele menino de modos sinceros e puros não terá maturidade para perceber estar num lugar que valoriza costumes arcaicos ao invés de promover a igualdade. Inocente, Bo não vê problema em puxar conversa com a atendente branca de uma mercearia: “Você parece uma estrela de Cinema!” ele diz, com a certeza de que sua gentileza seria correspondida. Diante do silêncio da moça, Bo deixa o local, mas não resiste a um flerte (um assobio), seu erro fatal. A mulher, enfurecida, sai da bancada e vai buscar um revólver, afugentando Bo e seus primos, que saem correndo. O que poderia parecer apenas um susto, na verdade, se mostra o estopim para uma situação que apenas aguardava a vítima perfeita para explodir e quando um grupo de homens brancos resolve invadir a casa do pastor procurando por Bo, o temor de Mamie se concretiza.

E Danielle Deadwyler, demonstrando uma presença de cena digna de intérpretes veteranas, faz de Mamie uma figura memorável, mesmo que aqui e ali seja sabotada pelos excessos do roteiro (detalharei no próximo parágrafo). Conhecida pela atuação no estiloso Vingança & Castigo e por participações pequenas em séries como Atlanta e Watchmen, Till – A Busca por Justiça tem tudo para dar o impulso que faltava à carreira da atriz norte-americana, que oferece uma performance marcada pela disciplina, como se Mamie Till fosse um poço de resignação e resiliência mesmo diante das piores situações. Deadwyler brilha nas passagens mais sutis, como aquela em que toca o corpo desfigurado de Bo à procura de uma conexão, um reconhecimento que, quando acontece, a faz desmoronar em lágrimas ou ao reagir às mentiras contadas no tribunal, quando é capaz de transmitir desprezo e revolta com um simples olhar.

Em contrapartida, o roteiro irregular impede o crescimento de Mamie como personagem, espremendo-a entre convenções que limitam seu potencial como figura inspiradora, negando-se a refletir a Mamie Till real. E quando alguém diz que Mamie poderia aproveitar a exposição pública para atrair a atenção de políticos em pleno ano de eleição, o que poderia resultar numa subtrama complementar, acaba sendo sumariamente ignorado pelo roteiro que, mais uma vez, recusa uma oportunidade para se ater à estrutura concebida inicialmente, que é o drama guiado pela desesperança, com Mamie Till numa cruzada fadada ao fracasso.

Se como roteirista Chinonye Chukwu claudica, no âmbito da direção ela se sai ligeiramente melhor: corajosa ao manter-se fiel à famosa decisão de Till em velar o filho com o caixão aberto, expondo os efeitos da brutalidade sulista e sujeitando o espectador a um longo e chocante plano que não economiza nos detalhes gráficos. Longe de ser gratuito, o momento ganha importância graças à habilidade de Chukwu de transportar para a tela o significado que Mamie buscou na realidade: converter Emmett “Bo” Till num símbolo das consequências do racismo, fazendo com que o povo encarasse o horror de forma nua e crua (“se eu contar, não acreditarão em mim, as pessoas precisam ver com os próprios olhos”).

Infelizmente, porém, a cineasta nigeriana acaba pesando a mão no tom da narrativa, esbarrando no melodrama e concebendo instantes com o claro intuito de buscar emoções fortes, atrapalhando a própria Danielle Deadwyler, que protagoniza duas sequências constrangedoras: a primeira diz respeito a Mamie recebendo o caixão de Bo, quando Deadwyler se entrega a um histrionismo inédito até então; a segunda, já no último ato, mostra Mamie num cafoníssimo ‘reencontro’ com Bo, gerando uma estranheza assustadora por destoar do restante da produção.

Ao menos Till – A Busca Por Justiça compensa parcialmente seus deslizes com um esmero técnico superlativo. Começando pelos figurinos de Marci Rodgers (Nem Um Passo em Falso), que refletem a trajetória de seus personagens – os vestidos coloridos de Mamie, por exemplo, são alternados com roupas formais e escuras ao longo da projeção – passando pela impecável reconstituição de época, com carros que acompanham as cores fortes dos figurinos e culmina numa fotografia que investe na sobriedade, mas que não se furta de exibir planos pictóricos (o meu favorito é o de uma cena noturna com uma enorme casa dominada pelo azul-marinho, mas com uma luz laranja banhando uma porta e destacando-se no quadro).

Por outro lado, apesar de narrar acontecimentos historicamente relevantes e de levar ao mundo a trajetória de Mamie Till e a terrível tragédia que a motivou a tornar-se uma das mais importantes vozes contra a segregação racial, Till – A Busca por Justiça se revela um esforço que dificilmente será tão lembrado quanto obras tematicamente semelhantes como Estrelas Além do Tempo e Loving – Uma História de Amor (ambas lançadas em 2016).


NOTA 6


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