Festival do Rio 2022 | Dia 1
O primeiro dia da maratona cinematográfica carioca não começou exatamente com o pé direito. Ao contrário das edições anteriores, quando tive a sorte de assistir a ótimos filmes logo de cara, esse ano tive de me contentar com obras abaixo da média. Além disso, alguns problemas atrasaram a projeção de "Nossa Senhora da Loja do Chinês", mas os obstáculos são comuns quando se trata do Dia 1 do Festival do Rio e a tradição se mantém.
Peter Von Kant (Idem) | França
Cineasta de versatilidade comprovada por uma vasta filmografia na qual sua coragem se traduz em obras de gêneros distintos, o francês François Ozon já foi da comédia ao drama, do suspense ao romance, sempre com desenvoltura enquanto se recusa a permanecer em sua zona de conforto. Ozon também nunca negou a influência de Rainer Werner Fassbinder em seus filmes, trazendo um apuro estético que deixaria o controverso diretor alemão orgulhoso. Adaptando As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, melodrama assinado por Fassbinder frequentemente lembrado como um filme de câmara clássico, mas também pela ousadia de incluir elementos lésbicos em pleno ano de 1972, François Ozon promove uma troca de gênero, transformando Petra em Peter, ainda que mantendo o teor homossexual que rege as relações da figura principal.
Na trama, Peter Von Kant (Denis Ménochet) é um cineasta recluso que goza uma vida de privilégios graças à fama e ao sucesso conquistados em sua carreira. Passando os dias em um luxuoso apartamento na cidade alemã de Colônia em 1942, ele transfere todos os seus afazeres a Karl (Stefan Crepon), seu calado e fiel criado a quem cabe, inclusive, a escrita de roteiros. Incapaz de se servir, ele só toma a iniciativa quando é para colocar um disco para tocar (ele sequer se dá o trabalho de se mover para atender o telefone).
Num belo dia, porém, Peter recebe a visita da cantora Sidonie (Isabelle Adjani), musa de seus filmes que se tornou também uma grande amiga. É ela quem lhe apresenta a Amir (Khalil Gharbia), um jovem ator que imediatamente atrai a atenção do veterano cineasta. Determinado a conhecer melhor o rapaz, não demora até que os dois resolvam trabalhar juntos, fazendo brotar uma relação que eventualmente acaba prejudicada pelos excessos de Peter.
Vivido por Denis Ménochet (o eterno Monsieur LaPadite de Bastardos Inglórios) como um ser de ego enorme e extremamente mimado, Peter está acostumado a ter todos os seus desejos prontamente atendidos (seu criado, inclusive, já até é capaz de antecipá-los), o que o coloca em rota de colisão com Amir, bem mais novo e com uma personalidade livre. A forma como Peter trata seu criado e a performance afetada de Ménochet, vale dizer, tornam quase impossível para o espectador simpatizar com o personagem.
Já Amir é interpretado por Khalil Gharbia como um sujeito simpático, de modos aparentemente relaxados e com um passado comovente. Por isso, quando ele resolve confrontar Peter, provocando-o até que uma crise de ciúmes faz o cineasta desabar em lágrimas, não chegamos a ter compaixão, muito pelo contrário, pois vibramos com a chegada de alguém finalmente disposto a dar um fim a esse mundo mimoso. Enquanto isso, Stefan Crepon brilha como Karl, dependendo de vários níveis de expressão para transmitir seus sentimentos, já que não possui diálogos.
Visualmente belíssimo, Peter Von Kant revela que François Ozon buscou o mesmo esmero estético da obra original de Fassbinder: o apartamento, por exemplo, ganha paredes em vermelho vivo que contrastam com os figurinos azuis de Peter e os tons pasteis que dominam as roupas de Karl, sendo curioso notar como paulatinamente Peter vai abandonando o azul para vestir as cores usadas por Amir, culminando num terno branco que reflete o estado emocional do artista numa sequência-chave durante o terceiro ato.
Mais um acerto da prolífica carreira de François Ozon, ainda que em menor grau, Peter Von Kant é uma obra que chama mais atenção pelo contexto no qual está inserida (a homenagem a Fassbinder, que inclui movimentos de câmera e planos específicos) do que pelo texto em si, pecando também por não oferecer uma âncora emocional ao espectador, que fica refém de um personagem desagradável até a última cena.
NOTA 6
Nossa Senhora da Loja do Chinês (Idem) | Angola
“Quando um comerciante chinês traz para um bairro de Luanda, Angola, uma peculiar imagem sagrada de Nossa Senhora, uma mãe enlutada busca a paz, um barbeiro inicia um novo culto e um jovem desorientado busca vingança por seu amigo perdido”. Lendo a sinopse oficial de Nossa Senhora da Loja do Chinês, é possível imaginar um filme com várias histórias orbitando um elemento, como o Cinema já vem nos apresentando ao longo dos anos. No entanto, falta ao filme do angolano Ery Claver uma conexão maior não necessariamente entre os personagens, mas sim com o público.
Com os personagens principais sendo acompanhados pela câmera enquanto realizam atividades triviais como cozinhar, comer ou fazer limpeza, o filme se entrega a uma atmosfera monocórdica que é enfatizada pela narração tremendamente irregular de Meili Li: em mandarim, a voz de Li inicialmente surge para tecer comentários complementares ao que estamos vendo, revelando o íntimo dos personagens, mas logo se entrega a divagações, como se fosse uma espécie de eu lírico.
Para piorar, o diretor angolano Ery Claver, investe em planos quase sempre estáticos, reforçando a impressão de que nada parece estar acontecendo de fato para que a trama evolua. É evidente a intenção de Claver em homenagear o estilo consagrado pelo Neo-Realismo Italiano, colocando não-atores em sequências majoritariamente externas e que evocam a situação de pobreza em que vivem, mas a demora em apresentar acontecimentos minimamente relevantes para a trama mina o envolvimento do espectador. O roteiro, também de Claver, determinado a alcançar uma aura poética, soa apenas pretensioso em suas intenções e enfadonho na maior parte do tempo.
Inexplicavelmente dividido em capítulos, Claver ainda se perde na estrutura não-linear que concebe, fazendo com que as idas e vindas se tornem confusas e contraproducentes. Para os espectadores brasileiros, por outro lado, vale pela curiosidade de conhecer um pouco mais de Angola, outra nação lusófona, principalmente pelo português que é falado por seus cidadãos, que além de falarem numa cadência estranha aos nossos ouvidos, carregam um sotaque repleto de referências.
Por outro lado, Nossa Senhora da Loja do Chinês merece elogios por sua concepção visual. A fotografia, por exemplo, investe numa paleta sóbria que reflete a natureza crua das subtramas, assim como a escolha de cores fortes para momentos-chave (azul para o encontro com a imagem da santa e as cortinas durante um jantar) surge como uma estratégia acertada justamente por se destacar perante a leve dessaturação da fotografia no restante do tempo.
Enquanto isso, as performances deixam claro que estamos diante de não-atores. Além de frequentemente derraparem nas inflexões, fazendo diálogos ficarem artificiais, também é possível ver alguns nomes do elenco quase olharem para a câmera em determinados momentos. Nada que comprometa o esforço louvável e evidente.
Desperdiçando a oportunidade de debater questões pungentes para a realidade de seu país, Claver se esquiva de qualquer aprofundamento nas subtramas que concebe. Há uma espécie de “culto” aos chineses (complexo de vira-lata?) tão raso que acaba recaindo no humor, ao passo que a presença da religião é praticamente ignorada pelo realizador, que também se esquiva de comentar as mazelas sociais de Angola. Tudo em detrimento de uma texto pretensamente poético, mas vazio em seu despropósito narrativo.
NOTA 3,5
Briga Entre Irmãos (Frère et Soeur, 2022) | França
Um pai enlutado pela morte do filho aos seis anos de idade recebe as condolências de uma série de pessoas em seu apartamento, mas a presença de um casal o enfurece. Colocando o homem para fora gritando palavras fortes e exigindo nunca mais vê-lo, ele aponta para a mulher e a acusa de nunca ter se importado com o menino, pois jamais se dispôs a conhecê-lo. Até que finalmente fica claro que o tal menino era seu sobrinho e o homem devastado... seu irmão. Com esse início forte, o diretor e roteirista francês Arnaud Desplechin (Reis e Rainha) mete o pé na porta e deixa claro para o espectador o tipo de filme que está por vir, prometendo uma densidade emocional que se torna uma verdadeira obsessão narrativa.
Dando um breve salto temporal, a história passa a seguir um simpático casal de idosos conversando dentro de um carro numa estrada que, repentinamente, recebe um carro desgovernado derrapando na pista até colidir violentamente com uma árvore. Os velhinhos vão até o local e descobrem que a motorista é uma jovem de apenas dezoito anos, aos prantos devido ao medo de ser repreendida pela mãe. Enquanto tentam acalmar a moça, o casal é surpreendido com mais um veículo descontrolado, dessa vez um imenso caminhão. Ficamos sabendo, então que os três foram violentamente atingidos. A menina morreu na hora, enquanto o casal de idosos foi parar na UTI. Consolidando esse padrão de eventos chocantes, o roteiro de Desplechin em parceria com Julie Peyr (A Excêntrica Família de Gaspard) não demora a revelar que os tais idosos são, na verdade, pais dos irmãos que apareceram brigando no início da projeção.
Capturando a atenção do espectador com um primeiro ato avassalador, o script passa a se desmembrar entre Louis (Melvil Poupaud) e Alice (Marion Cotillard). Enquanto ela seguiu carreira como atriz, consolidando-se no Teatro Francês, ele resolveu se isolar, vivendo com a companheira Faunia (Golshifteh Farahani) no meio de um campo remoto. Apesar de distantes, os irmãos são unidos por um sentimento de ódio mútuo, motivando declarações raivosas e promessas radicais que são abaladas pela notícia do acidente dos pais.
Os problemas começam a aparecer quando fica claro que o primeiro ato não foi intencionalmente concebido como o mais forte da produção, já que fica claro que a ideia de Desplechin é manter esse tom nos dois terços seguintes, tentando criar situações que sustentem o clima bélico entre os irmãos enquanto alimenta a expectativa por um embate. Nesse momento, me lembro da cirúrgica reflexão da animação Os Incríveis (“Se todos forem ‘super’, ninguém mais será”), que cai como uma luva para Briga Entre Irmãos. Afinal, se todas as cenas forem tão fortes como a primeira, não haverá mais impacto, pois o espectador já terá se acostumado.
E é precisamente o que acontece, evidenciando o desespero de Desplechin e Peyr para extrair reações de seu público, sendo particularmente triste constatar o exagero que toma conta de todo o restante da projeção. A mão pesada de Desplechin contamina outros departamentos, especialmente a trilha sonora que, melosa e alta, quando combinada aos cafonas zooms dramáticos do diretor, fazem o filme parecer uma novela mexicana, com direito a barracos gratuitos como aquele protagonizado por Alice numa farmácia.
Vivida por uma Marion Cotillard (A Origem) que, apesar de carismática e intensa, nem de longe lembra o brilhantismo de outras épocas, Alice é vítima da covardia do roteiro que opta por usar remédios como justificativas para seu comportamento, não levando adiante o argumento. E o mesmo acontece com Melvil Poupaud (Verão de 85), cujo Louis é ainda mais prejudicado ao ter de protagonizar um constrangedor momento ocasionado pelo uso de ópio (ele simplesmente sai voando pela cidade).
Contando com uma parcela indesculpável de conveniências (os encontros no hospital e no mercado), o roteiro prepara para um embate (Alice chega a desmaiar ao notar a presença de Louis) que acaba sendo decepcionante. Além de abrupto, trai-se a magnitude que foi estabelecida ao longo da projeção, como se a solução fosse muito mais simples do que parecia, mas cometendo o erro capital de não gerar reações no restante da família. Abusando dos diálogos óbvios e expositivos “seus pais estão mortos, você não tem mais ninguém”, Briga Entre Irmãos ainda tenta elevar o nível de erudição da produção, soando apenas patético ao incluir conversas quase que inteiramente envolvendo metáforas.
Mesmo exagerando em quase todos os aspectos, Briga Entre Irmãos consegue a proeza de diluir o impacto de sua narrativa, numa escalada inversa que culmina num terceiro ato frustrante e genérico, não recompensando o investimento feito numa história repleta de boas intenções em seu discurso em prol do amor e do perdão, expondo as consequências de uma vida tomada pelo ressentimento.
NOTA 4
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