Festival do Rio 2023 | Dia 3
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 3

Atualizado: 29 de out. de 2023

A Fragilidade do Gelo (Ran Dong, 2023) | China/Singapura

Indicado para representar Singapura no Oscar de Melhor Filme Internacional, A Fragilidade do Gelo é também um dos mais delicados e intimistas a integrar a seleção do Festival do Rio 2023. A história busca uma conexão com a Geração Z ao colocar três personagens de vinte e poucos anos compartilhando inseguranças e ansiedades enquanto parecem parados no tempo. Nana (Dongyu Zhou, a Chen Nian do marcante Better Days) é uma guia turística que divide o apartamento com o amigo Xiao (Chuxiao Qu, do blockbuster chinês The Wandering Earth), que apesar de ser um mero ajudante no restaurante da família, vive confortavelmente. Já Hao (The Volunteers: To The War) é o forasteiro do grupo: trabalhando com finanças em Xangai, ele chega chamando atenção com seu relógio caro. Basta uma viagem por uma comunidade coreana para cruzar seu caminho com Nana, dando início a uma série de aventuras pelas gélidas estradas do nordeste da China.


A paisagem esbranquiçada e a natureza sensível dos personagens valorizam os momentos de introspecção, fazendo de Ran Dong (no original) uma experiência tranquila, com espaço de sobra para reflexões. Aliás, os segredos que cada personagem guarda tornam-se secundários diante das circunstâncias, com o cineasta Anthony Chen (Drift) percebendo o potencial das sequências em que o trio se entrega sem reservas a viagens exploratórias. Reflexo direto de uma geração ansiosa por natureza, o enredo deve ressoar poderosamente entre os espectadores da mesma faixa etária dos personagens.


Em contrapartida, Chen pesa a mão no sentimentalismo em alguns momentos, graças a um excesso de cenas com os personagens chorando (muitas vezes por motivos desconhecidos). Felizmente, ele se recupera ao sugerir paulatinamente que Hao esconde problemas psicológicos, seja por meio das insistentes ligações de um centro de saúde mental (que ele sempre recusa afirmando se tratar do número errado) ou pelas insinuações suicidas (“já pensaram em acabar com tudo?”, “basta fechar os olhos e pular”). O diretor e roteirista também merece elogios por mostrar o relacionamento de dois personagens sem recorrer à nudez.


Mas o ponto alto da narrativa é o magnetismo entre os três amigos, unidos pela solidão, compartilhando uma falta de propósito que os mantém paralisados. É como se um encontrasse no outro o subterfúgio para fugir de seus tumultos internos. E quando não conseguem, a mínima fagulha é capaz de incendiar o ambiente, como no momento em que Hao descobre uma cicatriz no tornozelo de Nana, marcada para sempre (física e psicologicamente) graças a um acidente que sofreu aos dezoito anos. Assim, os personagens acabam funcionando muito melhor coletivamente do que de forma individual, por mais que a personalidade reservada de Hao desperte uma curiosidade genuína.


A fotografia, embora faça um magnífico trabalho ao captar as belezas naturais da China, investe em planos que não contribuem tanto para a narrativa, como a sequência num labirinto de gelo, óbvia em seu simbolismo e completamente deslocada dentro do enredo. Enquanto isso, a trilha sonora de Kin Leonn impressiona por se tratar do trabalho de um estreante, com melodias agudas no piano que sublinha com perfeição o clima melancólico da história.


Pacífico e atmosférico, A Fragilidade do Gelo é uma obra que exala beleza e mesmo que não seja tão profundo quanto julga ser, vale como uma daquelas experiências com potencial catártico.


NOTA 8


 

Meu Pequeno Maad (Moje Slunce Mad , 2023) | República Tcheca


Novo longa-metragem da experiente animadora tcheca Michaela Pavlátová, indicada ao Oscar de Melhor Curta-Metragem em 1993 (Reci, Reci, Reci), Meu Pequeno Maad se baseia no romance da jornalista Petra Procházková para contar a história de uma estudante de Economia em Praga que se apaixona perdidamente por um afegão. Tanto que ela decide deixar seu país para viver no país asiático, conhecido pela ocupação estadunidense e o eterno conflito com os talibãs. Que por sua vez, assassinaram o irmão e o pai de Nazir, agora marido de Helena (que no Afeganistão passou a se chamar Herra. Seguindo os passos de A Ganha-Pão e Os Olhos de Cabul, Moje Slunce Mad (no original) é mais uma animação a colocar o país islâmico no centro de sua história. E se inicialmente as atenções do roteiro são voltadas para as diferenças culturais, aos poucos a narrativa muda de tom, ganhando contornos cada vez mais dramáticos à medida que se aprofunda nas raízes misóginas da sociedade Afegã.


Iniciando a projeção com um travelling que revela acontecimentos no primeiro e no segundo-planos, a animação exibe um traço estilizado, mas sem sacrificar a animação (diferente de Atiraram no Pianista, filme de abertura do festival), Meu Pequeno Maad é um filme voltado para adultos. Abrindo mão de cores fortes para ilustrar o cotidiano sombrio dos afegãos, trata-se de uma experiência melancólica e frequentemente revoltante, especialmente graças aos valores retrógrados do país. Ora sutil, ora escrachado, a produção bate de frente com os costumes medievais do islamismo, onde uma noite de núpcias só pode dar certo se a mulher for virgem (caso contrário, as consequências podem ser fatais), por exemplo. Da mesma forma, a mera circulação de uma fita VHS de Instinto Selvagem já é suficiente para escandalizar Cabul, com os cidadãos chamando as mulheres ocidentais de prostitutas.


Já no prólogo, Herra deixa claro que todos tentaram avisar que ela teria uma vida difícil no Afeganistão, mas ela resolveu pagar para ver. “Aqui as mulheres obedecem aos maridos”, diz Nazir logo após sua esposa contrariá-lo aparecendo para as visitas (sim, elas são proibidas de serem vistas por visitantes ocidentais. São momentos expositivos graças à narração intrusiva, mas que passam batido facilmente em função do choque provocado pelos acontecimentos. O ponto alto do filme, no entanto, é também aquele mais sutil em seu simbolismo, quando um menino coloca uma burca e sai correndo pela casa bradando estar “invisível”, num reflexo certeiro da posição da mulher na Sociedade afegã.


Apesar de bem animado e possuir um roteiro forte, o roteiro sofre com as mudanças repentinas sofrendo por Nazir, aparentemente um homem bipolar capaz de fazer juras de amor num momento e se transformar num monstro machista em outro. Já o filho do casal, cujo nome é também o título do filme, perde o destaque no terço final, cedendo espaço para uma discussão pertinente entre personagens supostamente progressistas e conservadores misóginos.


Nos minutos finais, Meu Pequeno Maad ainda se dá ao luxo de trair seu discurso, com uma utópica insurreição feminina que merece elogios pela imagem emblemática que gera (dezenas de mulheres correndo com os cabelos ao vento, desfrutando da liberdade), mas que não vai além disso, resultando numa experiência com alto valor cultural, ainda que mediano em seus feitos narrativos.


NOTA 6,5


 

Os de Baixo (Los de Abajo, 2023) | Bolívia



Num isolado vilarejo de Rosillas, região da Bolívia, Gregorio vive uma luta diária para garantir água para a sua família. Escassa na geografia árida e rochosa do local, era para ser um direito básico de qualquer cidadão, mas é encarada como um favor pelas autoridades locais. Essa situação, embora presente numa obra de ficção, reflete um problema crônico da sociedade boliviana, impactada pela crise da privatização da água.


O roteiro assinado pelo estreante Alejandro Quiroga (que também dirige), retrata Gregório como um sujeito letárgico aos olhos dos familiares, alguém paralisado em função de um trauma. Ele se recusa a recuperar a vaca que fugiu para as montanhas, mesmo sabendo que a mãe vive da venda de leite. Mente para as pessoas à sua volta, transfere a culpa por erros recentes. Negligencia Olegário, o filho pré-adolescente que jamais deixa de ver o pai como modelo, ignorando os comentários feitos pelos avós.


E realmente fica difícil simpatizar com alguém tão errante quanto o protagonista, de vacilos repetidos que não indicam o menor sinal de recuperação. No primeiro obstáculo que aparece, entrega-se a bebida e quando contrariado, dá um chilique no meio da rua. Aos poucos, porém, percebemos que Gregorio é, sim, um sujeito turrão, mas de boa índole. Num primeiro momento, é frio ao ouvir o pedido do filho por um singelo pião. Reclama, tenta fugir pela tangente, mas no final não resiste, acaba por comprar o brinquedo. Diante de tantas dificuldades, Goyo (como é conhecido) acostumou-se a ter de se esforçar para realizar a mais simples das tarefas.


A escassez de água, noticiada pelo rádio como o estopim para conflitos sangrentos na Bolívia, é o único problema capaz de realmente tirar o protagonista do sério. Ainda mais depois de insistentes pedidos na prefeitura e a autoridades locais. Os políticos, no entanto, veem a situação como uma forma de capitalizar eleitores, propondo ajuda em troca de trabalho. “Não é um favor, é o meu direito”, brada Gregorio. Desesperado, ele ameaça desviar o curso de um rio próximo, coincidentemente, aquele que abastece o casarão de um típico Coronel. Enquanto a população sofre com a seca, o aprendiz de mafioso ostenta uma gigantesca piscina, num contraste semelhante a Curral, produção brasileira que possui uma série de semelhanças temáticas. E o que dizer da propaganda de Coca-Cola bem no centro da cidade?


Fotografado por Diego Robaldo com cores quentes, Os de Baixo é uma produção da vertente realista, utilizando a luta de classes para pontuar seu discurso pessimista (“não acredito no desenvolvimento”, diz alguém no rádio), com os poderosos se apoiando nos mais humildes para se manterem no topo. Os acordes tristes da trilha sonora vão pelo mesmo caminho, indicando que a batalha de Gregório já começou perdida, o que talvez motive seu desânimo com praticamente tudo a sua volta.


Incluindo uma gratuita cena de sexo, o filme peca ao manter uma distância grande demais entre algumas subtramas, que se desenvolvem de forma irregular no enredo, como o bullying sofrido por Olegário. E mesmo que o projeto goze de imagens absolutamente pictóricas da zona rural boliviana, falta polimento a diálogos e situações, especialmente no final, quando o roteiro busca atalhos para se aproximar de narrativas mais comerciais.


No geral, Os de Baixo é um esforço louvável e honesto, evidenciando a riqueza e a qualidade do cinema latino-americano.


NOTA 6


 

Reality (Idem, 2023) | Estados Unidos


Exibido no Festival de Berlim desse ano pouco antes de entrar no catálogo da HBO Max, Reality pode até ser resumido grotescamente como um telefilme com menos de uma hora e meia de duração. Por outro lado, como a maior parte das produções da HBO, trata-se de uma obra muito mais sofisticada e ambiciosa do que parece. O título se refere ao peculiar nome da protagonista, Reality Winner (“Vencedora da Realidade” em tradução literal), que em 3 de Junho de 2017 recebeu a visita de dois agentes do FBI em sua casa, num bairro pacato da cidade de Augusta, Geórgia.


À primeira vista, sabemos pouco sobre a moça, além do fato de trabalhar como linguista na NSA (Agência de Segurança Nacional) e viver com um gato e um cachorro. Levando uma vida aparentemente tranquila, ela se surpreende com a chegada dos federais, que por sua vez fazem questão de pregar pela informalidade ao abordá-la. O motivo da “visita”? Um documento confidencial da NSA acabou vazando e a moça é a principal suspeita. Como se trata de um caso real, é possível assistir ao filme sabendo de tudo, o que não chega a comprometer a experiência. Aqueles que, como eu, encararem Reality “no escuro” poderão se deleitar com surpresas e reviravoltas.


Tina Satter está estreando como diretora e roteirista de um longa-metragem, mas a história lhe é familiar, já que ela também é dramaturga e o script é baseado no texto de sua peça (Is This a Room?). Apesar de ser uma debutante no Cinema, a técnica de Satter impressiona, driblando a natureza teatral do projeto com estratégias quase sempre eficazes, como ao investir em planos fechados que ajudam na criação de uma atmosfera cada vez mais claustrofóbica. É interessante notar a dinâmica que a norte-americana promove na narrativa, partindo do exterior ensolarado do subúrbio tipicamente estadunidense, até finalmente entrar na casa de Reality, quando os ambientes fechados favorecem as intenções da diretora, assim como o design de som faz questão de impedir que o espectador esqueça do que está acontecendo do lado de fora.


O elenco vai pelo mesmo caminho, com Marchánt Davis e Josh Hamilton interpretando agentes que são muito mais do que os olhos podem ver. Este último é extremamente bem-sucedido ao transmitir um ar benevolente através de olhares simpáticos e sorrisos fáceis. A retórica amigável, sempre demonstrando preocupação com a moça e seus animais de estimação é empregada como uma das várias estratégias do oficial para deixar a suspeita mais confortável, abrindo espaço para a desejada confissão. Alternando pausas que sugerem um homem analisando friamente o que obtém como resposta com reações imediatas sempre que atinge seu objetivo, Hamilton chama atenção por fugir do tipo bonachão e sincero que costuma interpretar (como o pai da protagonista do excepcional Oitava Série).


Já Davis opta por uma composição menos sutil, evidenciando que seu personagem é a parte menos experiente da dupla de agentes. Note, por exemplo, o gesto que ele faz quando Reality se oferece para desbloquear o celular confiscado. O físico imponente de Davis ajuda a estabelecer o clima de opressão no qual Reality está imersa, justificando a postura cada vez mais nervosa da jovem e alimentando possíveis interpretações acerca do patriarcado, mesmo não sendo o foco da produção.


O destaque da obra, no entanto, é mesmo Sidney Sweeney, atriz que vem colecionando performances marcantes, seja na TV (em séries como Euphoria e The White Lotus) ou no Cinema (Era Uma Vez em Hollywood, de Tarantino e no fraco Observadores). A chave para o sucesso de Reality, personagem e filme, passa pela escolha acertada de Sweeney em fazer da protagonista uma pessoa comum, daquelas que podemos encontrar em qualquer lugar. Os modos juvenis, o jeito de falar repleto de gírias e o zelo para com seu cachorro e sua gata facilitam o processo de identificação com o público.


Mas é quando Reality passa a ser interrogada dentro de casa que a atriz de 26 anos brilha de verdade. Pois não há nada mais fascinante na produção do que acompanhar as táticas dos federais aos poucos demolindo a protagonista e, nesse ponto, Sidney Sweeney faz um trabalho digno de aplausos ao ilustrar a ansiedade crescente pela qual passa sua personagem, por mais que os homens à sua frente tentem amenizar o estresse da situação. Ela não se entrega a caretas e muito menos ao histrionismo, optando por alterações sutis em sua expressão, como piscadas aceleradas e detalhes em sua postura (os braços cruzados num momento importante e a decisão de se sentar).


O longa-metragem só não atinge a excelência em virtude da impaciente trilha sonora de Nathan Micay, que distrai o espectador sempre que tenta sublinhar os eventos-chave. Também há um esforço honesto, mas intrusivo, de comprovar a veracidade do que estamos vendo, como nas várias intervenções de documentos oficiais que enchem a tela e os áudios reais que quebram o ritmo. Os floreios para esconder algumas informações supostamente secretas tornam-se besteiras supérfluas quando o terceiro ato coloca a protagonista para revelar quase todas elas. Tais imperfeições fazem com que a produção soe mais como uma simulação do que como um filme, trocando seu valor artístico pelo caráter documental.


Surpreendentemente dinâmico diante dos desafios impostos pelo cenário reduzido e inquietante à medida que entendemos a magnitude dos problemas enfrentados pela protagonista, Reality é uma experiência magnética não apenas pelos aspectos narrativos, mas também pelos atributos técnicos, revelando uma cineasta em total controle de sua narrativa e cujas habilidades a colocam como um genuíno talento a ser observado.


NOTA 7,5




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