Festival do Rio 2023 | Dia 6
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 6

Atualizado: 29 de out de 2023

Here (Idem, 2023) | Bélgica


Escrito e dirigido por Bas Devos, Here é uma produção belga que deve dividir o público, pois possui o tipo de narrativa que exibe longos planos contemplando a natureza ou simplesmente focando personagens... contemplando a natureza. A curta duração, no entanto, não deve representar um impeditivo para quem é sensível a histórias mais cadenciadas.


A trama acompanha Stefan (Stefan Gota), funcionário de uma construção e que está prestes a conseguir quatro semanas de férias. Um sujeito tão acostumado à rotina e sem muitas opções de lazer que fica sem saber exatamente o que fazer com a abundância de tempo livre. Ainda mais quando descobre que precisa de apenas duas ou três horas de sono para acordar devidamente revigorado e pronto para outra.

Entre rápidas visitas ao restaurante onde a irmã trabalha, caminhadas sem rumo (até ficar com frio, quando resolve voltar) e minutos debruçado na sacada, ele mal consegue arranjar afazeres. Prestes a viajar para visitar a família, esvaziar a geladeira se torna o mais perto que ele terá de um passatempo. Portanto, não espere mais do que algumas cenas de Stefan preparando uma sopa com o que resta de legumes e verduras na geladeira...

E quando finalmente nos acostumamos ao vagaroso dia a dia do protagonista, a história nos apresenta a Shuxiu (Liyo Gong), bióloga especialista em fungos que quando não está estudando, passa a maior parte do tempo no restaurante da mãe. Coincidentemente, numa noite chuvosa, o estabelecimento acaba recebendo um visitante ilustre: Stefan. A moça consegue arrancar apenas algumas palavras do tímido, mas gentil rapaz, que deixa o local sem maior alarde.


Quando o roteiro retoma a trajetória do protagonista, o vemos numa daquelas caminhadas aleatórias, à deriva na floresta até se deparar “coincidentemente” com Shuxiu, agachada no solo enquanto examina alguns espécimes. O reencontro repentino mantém os dois enrijecidos até pouco a pouco se soltarem. Algumas horas se passam e eles já estão trocando sorrisos. O contato entre os dois vai crescendo de forma lenta e praticamente sem grandes acontecimentos, refletindo o próprio filme em si. O simples toque entre as pessoas é tratado com imensa reverência pelo filme. Não à toa, Stefan não hesita em se desculpar quando esbarra no ombro de uma senhora no ônibus. Ela se espanta diante do jovem visivelmente desconcertado.

Pois Here traz uma ideia singela e sem pressa alguma para desenvolver seu discurso sobre a germinação de relacionamentos, fazendo um paralelo com a natureza que frequentemente rende mais do que belas imagens. A personalidade pacata do protagonista, receoso na abordagem de outras pessoas é apenas um dos elementos fascinantes do roteiro, escrito pelo próprio diretor Bas Devos.


Nascido na região de Flandres, ele adota um tipo de linguagem que se distancia da escola naturalista e hiperrealista dos Dardenne, optando pelo poético. E enquanto Lukas Dhont, compatriota responsável pelo clássico instantâneo Close se mostrou um mestre na arte do subtexto, Devos procura fornecer um ambiente cômodo e relaxante ao espectador, apenas para pegá-lo desprevenido com o que pode ser o alvorecer de um novo amor.


NOTA 6,5

 

Cães de Caça (Les Meutes, 2023) | Marrocos


A cultura islâmica está suficientemente difundida pelo mundo a ponto de ser reconhecida pelo espectador. Para o bem e para o mal, inúmeras obras já retrataram o Islã (nessa edição, o Festival trouxe também Meu Pequeno Maad), mas poucas foram tão pessimistas quanto este Cães de Caça, excetuando-se obviamente as produções tipicamente ocidentais que costumam retratar os muçulmanos como vilões.

No filme escrito e dirigido pelo estreante Kamal Lazraq (e vencedor do Grande Prêmio do Júri da mostra Un Certain Regard em Cannes), não há espaço para a redenção e muito menos um paraíso aguardando os protagonistas de braços abertos para lhes absolverem de seus pecados. A realidade nua e crua das ruas marroquinas não dá subterfúgio para seus habitantes vislumbrarem recompensas além-vida. Ao contrário da célebre frase do Gladiador Maximus Decimus Meridius, o que fazemos em vida, ecoará apenas em vida.

Lazraq é curto e grosso ao narrar a mais infernal das noites para Hassan (Abdellatif Masstouri) e Issam (Ayoub Elaid), pai e filho, respectivamente, enredados num labirinto de infortúnios e desventuras. Contratado para sequestrar o rival de seu chefe, Hassan pede a ajuda do filho (seu cúmplice habitual), para executar a tarefa. Amadores, eles conseguem prender o alvo dentro do porta-malas, mas são surpreendidos quando este acaba morrendo sufocado. O que fazer?


Essa é a pergunta mais feita durante os enxutos 91 minutos de projeção e normalmente precedem uma má ideia sendo pessimamente executada e provocando ainda mais problemas, como na epopeia de Héracles/Hércules em sua luta contra a Hidra de Lerna. Pai e Filho acabam ligados por um laço ainda mais incandescente do que o de sangue: o da cumplicidade. Juntos num crime com potencial catastrófico, eles passarão o restante da noite tentando varrer a sujeira para baixo do tapete, antes que o amanhecer os exponha.

Originalmente entitulado Les Meutes (As Matilhas), o filme parte de uma metáfora envolvendo cachorros. Como se o universo criminoso marroquino se resumisse a gangues, ou matilhas. Cães treinados para o combate desde que nasceram e ávidos pela conquista territorial. O filme começa e termina mostrando diferentes espécies vagando pelas imundas vielas e becos do lugar. Ao contrário de nós ocidentais, os islâmicos não os enxergam como os melhores amigos do homem e sim criaturas profanas, símbolos máximos da impureza. O paralelo com a bandidagem é sólido e bem elaborado a partir das veladas rinhas de cães que abrem a narrativa.


A fotografia crua, dando vazão aos movimentos nervosos da câmera, busca as sombras da cidade marroquina onde a história se passa e que serve de morada para os marginais. Sem a pompa de um filme de máfia, mas longe de ser tão violento e pesado como parece, o desenrolar do enredo mostra um ciclo vicioso alimentado pelo desespero, seja por um erro cometido ou pela ausência absoluta de perspectivas.

Finalizando a história com uma rima temática (enriquecida por uma surpresa), Cães de Caça é um competente thriller de sobrevivência disfarçado de conto de advertência, tecendo um elaborado comentário sobre um cenário tão sombrio que até a luz tem medo de entrar.


NOTA 7


 

Dogman (Idem, 2023) | Estados Unidos


Se logo após assistir a Hit Man me peguei pensando, confuso, no fato de o filme ter ficado de fora da competição pelo Leão de Ouro em Veneza, agora estou nada menos do que estarrecido ao constatar que o mesmo festival encontrou em Dogman um postulante a sua honraria máxima.


Escrito e dirigido pelo francês Luc Besson, cada dia mais distante de seu clássico O Profissional, o fime começa com um jovem sendo capturado pela polícia enquanto transportava dezenas de cães num caminhão e vestido de Marilyn Monroe. No melhor estilo Coringa, o rapaz passa a ser abordado pela Dra. Evelyn (Jojo T. Gibbs), psiquiatra que miraculosamente é capaz de fazê-lo conversar abertamente sobre toda a sua vida, incluindo menções a crimes e traumas de infância.


Se Besson, um dia, nos convenceu de que poderia possuir um mínimo de inteligência, tudo foi por água abaixo quando nos presenteou com o hediondo Lucy, demonstrando um alcance pueril ao ilustrar como agiríamos caso usássemos 100% de nosso cérebro, uma falácia cientificamente contestada que poderia ao menos render um bom filme, mas nem isso o cineasta conseguiu fazer.


Em Dogman, ele concebe o roteiro para pessoas aparentemente tão estúpidas como ele. Só isso para justificar as milhares explicações que ele se dá o trabalho de oferecer, algo que até Christopher Nolan consideraria um exagero. O problema é que ele, ainda por cima, deve se considerar um gênio por brincar com as palavras, como na sequência em que uma faixa com a frase “em nome de Deus”, vista ao contrário, revela-se “dogman” (Homem Cachorro). Falando nisso, o protagonista se chama Doug (a pronúncia em inglês se assemelha a “dog”, que significa “cachorro”, entendeu? Genial, não?). Há uma explicação até para o hábito de Doug se vestir de mulher (ele só tinha acesso a revistas de moda feminina). Eu poderia escrever páginas e mais páginas trazendo as explanações juvenis do realizador, mas prefiro passar para outra questão.


Pois Luc Besson gasta uma tremenda energia explicando o óbvio, ao invés de revelar o motivo que levou o pai abusivo do protagonista a abrigar dezenas de cães a ponto de ter de construir um canil. A resposta imediata? Para ele ficar com ciúmes do amor do filho pelos animais e aprisioná-los juntos (“essa é a sua família agora!” grita o homem malvado). E o que dizer do tiro de escopeta À QUEIMA ROUPA que o menino leva no peito e que o faz PERDER UM DEDO?


Sem contar as inúmeras sequências em que os cachorros, melhores amigos e aliados de Doug, se transformam em gênios do crime, invadindo e assaltando casas? Em certo momento da projeção, eu pensei estar assistindo a uma versão alternativa de Como Cães e Gatos e passei a aguardar ansiosamente pela entrada triunfal de Kitty Galore. Os cachorros, que segundo Doug jamais foram treinados, são inteligentes a ponto de entenderem o que o amigo humano diz e também sabem diferenciar pacotes de açúcar dos de farinha de trigo.


Dogman oferece uma experiência confusa, pois temos de quebrar a cabeça para entender o que diabos Luc Besson está tramando. Sua intenção é fazer uma comédia? Uma farsa? Um suspense psicológico? Um show burlesco? Ao final, nenhuma teoria se sustenta, pois o filme se leva a sério demais para ser encarado como uma paródia e é muito ridículo para ser interpretado como qualquer coisa diferente do humor.


Para piorar, parece que o roteiro abriga cinco filmes dentro do próprio filme. Há mudanças tão bruscas de tom, que o espectador certamente ficará em dúvida se o montador original desistiu de encontrar um sentido e simplesmente abandonou a produção, largando o pepino nas mãos do pobre Julien Rey (cúmplice habitual de Besson). Depois de um início absolutamente desolador, a narrativa simplesmente abraça um segundo ato que busca entreter o espectador ao mostrar como Doug trabalha em conjunto com os cães para ganhar dinheiro e se encerra do jeito mais Luc Besson possível, com uma sequência de ação que beira o inacreditável (faltou apenas a famigerada bazuca, que sempre dá as caras nos filmes do diretor francês).


Transformando-se numa edição para idiotas de Esqueceram de Mim, sai o estudo de personagem promissor e entra o Homem-Cachorro do título, que apesar de incapaz de passar mais do que alguns minutos fora da cadeira de rodas, conseguiu plantar armadilhas que ajudassem os cachorros a executarem caricatos marginais latinos como se fossem versões caninas de John Wick.


Diante de um texto tão estapafúrdio e inacreditavelmente ruim, fico com pena de Caleb Landry Jones, que há anos vem oferecendo performances cada vez melhores, como o Red Welby do excepcional Três Anúncios Para um Crime ou o complexo protagonista do formidável Nitram. Como Doug, ele não faz diferente, entregando-se de corpo e alma a um personagem que possuía imenso potencial no papel, mas que se perde numa história caótica.


Desleixado, o filme ainda comete o amador deslize de escalar um ator de olhos escuros para interpretar Doug na infância, enquanto na fase adulta é interpretado por um Caleb Landry Jones de olhos azuis. O que esperar também de uma produção que inclui policiais que mais parecem variações do Frank Drebin de Corra Que a Polícia Vem Aí? Aliás, há uma sequência involuntariamente hilária em que os cachorros de Doug invadem uma delegacia para resgatá-lo (isso mesmo que você leu) e um deles NOCAUTEIA um policial simplesmente latindo. Aparentemente, o oficial morreu de susto... Vale ressaltar também que ele era a única pessoa em toda o recinto. Nada, porém, se compara ao detetive que vai investigar o local e sequer nota a presença de câmeras, qualificando-se imediatamente para integrar o elenco do próximo Loucademia de Polícia.


Cafona, ridículo, imbecil e, em última análise, extremamente frustrante, Dogman talvez fosse encarado com alguma condescendência caso fosse desovado em algum serviço de streaming, mas não após ser selecionado por festivais tão prestigiados como os de Veneza e do Rio de Janeiro. E que tenha competido pelo Leão de Ouro no lugar de Hit Man é algo que jamais compreenderei.


NOTA 2

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