'Luta de Classes' reúne Spike Lee e Denzel Washington em remake de clássico
- Guilherme Cândido
- há 1 hora
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Só a ideia de refazer um clássico pode soar como um sacrilégio, ainda mais se tratando do milagre de um dos deuses do Cinema, a menos que ela parta de alguém de dentro do próprio panteão. Depois de ousar fazer sua versão do adorado Oldboy (2003), o estadunidense Spike Lee se vê em posição de atualizar outra relíquia sagrada do Cinema oriental, reivindicando as inquietações manifestadas pelo japonês Akira Kurosawa (1910-1998) em seu divino Céu e Inferno (1963).
O exame minucioso da selva capitalista a partir de um de seus predadores, é substituído pela jornada redentora de alguém que finalmente se vê ameaçado no conforto proporcionado pelo topo da cadeia alimentar. Sai a fábrica de sapatos povoada por executivos gananciosos ávidos para engolirem o diretor vivido por Toshirô Mifune (1920-1997), entra a gravadora liderada pelo carismático e bem-intencionado David King, que em Denzel Washington (Gladiador II) encontra seu intérprete perfeito. A diferença é que nesta recriação, o protagonista valoriza sua posição justamente por ter vindo de baixo, respeitando quem, como ele, penou para escalar a montanha do sucesso com as próprias mãos.

Um dos melhores atores em atividade, Denzel incandesce em cena ao traduzir os maneirismos de quem não esqueceu de suas origens populares. O sorriso fácil e a retórica sedutora, marcas registradas do vencedor de dois Oscars, são ferramentas utilizadas para desconstruir a casca endurecida ostentada pelo papel originário. Difícil imaginar alguém capaz de incrementar essa personalidade maior que a vida, com o peso dramático dos dilemas morais encarados pelo personagem e Washington o faz como pouquíssimos. Repare, por exemplo, como seu David King se recusa a levantar a voz ao repreender o filho, ou o momento em que confronta seus tormentos internos ao tomar a decisão que influenciará sua carreira para sempre, e verá um ator em pleno domínio de seu papel.

Em sua quinta colaboração com o astro novaiorquino, Spike Lee, oferece um espaço vasto para sua estrela brilhar, mesmo que não resista em chamar atenção para si em diversos momentos. Como limitar a visão criativa de um artista que se destaca precisamente por seu estilo provocador? As músicas que invadem o campo da mesma forma arbitrária com que se esvaem, os cortes secos que picotam diálogos prosaicos, a recusa em adotar uma linguagem convencional e fácil de decodificar. A trilha grandiosa de Howard Drossin (O Homem Com Punhos de Ferro) pairando intocada e a montagem rebelde são contagiados pela verve libertina desse Spike Lee sem amarras.

Assim como há momentos mágicos em que todos os elementos fílmicos trabalham juntos como uma orquestra afinada tocando uma sinfonia imortal (a corrida pela mochila e a batalha de rap), há instantes de pura autoindulgência da parte do cineasta, uns gerando efeitos positivos, outros esmurrando a imersão do espectador. Os Yankees, time de beisebol do qual Lee é torcedor, ganham mais espaço do que deveriam, por exemplo, roubando a atenção do cineasta ao ponto deste deixar de acompanhar um personagem para focar num anúncio de venda de ingressos, por exemplo. Em outra passagem, alguém chega a gritar palavras de apoio (e insultos a uma equipe rival) diretamente para a câmera.

Felizmente, para cada rompante fanático de Spike Lee, há duas ou três sequências exaltando a natureza multicultural de Nova York e a parada em homenagem aos porto-riquenhos deve provocar calafrios no presidente Donald Trump, seu desafeto público. A cidade é retratada como um microcosmo vibrante, com vários eventos acontecendo simultaneamente e de diversas naturezas. Mais do que um palco para a história, o lugar é como um personagem onipresente, tamanha a adoração demonstrada pelo diretor de fotografia Matthew Libatique (Ladrões), através das lentes que captam arranha-céus, pontes e ruas com reverência absoluta, beneficiando-se inclusive do céu de brigadeiro que se instala até o final.

Por se tratar de um filme tematicamente centrado na Indústria Musical, era de se esperar uma atenção maior à trilha sonora e o compositor Drossin não decepciona, mesclando seus acordes clássicos ao suingue das canções que salpicam a narrativa e incluem hits irresistíveis. Por outro lado, o já citado desprendimento de Lee às convenções gerará debate nos instantes finais, quando o cineasta aproveita a presença do rapper A$AP Rocky para exibir um clipe na íntegra. O segmento, por pipocar tão subitamente na tela, pode assustar, ainda mais pelo engajamento de Lee, entregando-se sem reservas à linguagem desse tipo de obra, mas está dentro da proposta.

Um desvirtuamento claro de Luta de Classes em relação ao filme de Kurosawa se dá pelo tratamento das personagens femininas, especialmente a esposa do protagonista, antes uma figura decorativa vítima de diálogos duríssimos que facilmente incorreriam em misoginia nos tempos atuais, agora um pilar da família e a quem King recorre quando precisa tomar atitudes cruciais. Precisamos levar em conta o contexto da época, claro, mas essa bem-vinda atualização se estende a vários pontos da narrativa.

O roteiro do debutante Alan Fox traz algumas das pautas mais efervescentes do momento, como a cultura do cancelamento, aqui utilizada para embasar um importante discurso que resvala em um dos vários dilemas morais concebidos. Fox também é inteligente ao empregar a superexposição das redes sociais para cobrir os momentos em que o herói era espionado pelo sequestrador, por exemplo. Além disso, era óbvio que Spike Lee não perderia a oportunidade de alfinetar o advento da Inteligência Artificial e seus defensores (“eu não preciso de IA para identificar uma voz!”). De forma um pouco menos sutil, o script escorrega ao tentar sublinhar pontos que já estavam claros (“meu pai, David King tem o melhor ouvido do ramo, mas o coração mais frio”), além de exibir a mesma vocação para o didatismo presente no longa de 1963.

Longe de ser relevante como Faça a Coisa Certa (1989) e eloquente como Infiltrado na Klan (2017), Luta de Classes ecoa como um show de reunião entre dois grandes músicos que há muito tempo não dividiam o palco. É o Cinema oferecendo a oportunidade de vermos Spike Lee e Denzel Washington performando e se divertindo juntos mais uma vez. Apreciemos.
NOTA 7,5