'Suçuarana' é um road movie complexo e tipicamente brasileiro
- Guilherme Cândido
- há 19 minutos
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Sinara Teles, de Arábia (2017) e Temporada (2018) ganha de presente o papel de Dora, uma eterna andarilha em busca de um lugar que soa como a Terra Prometida. Um espaço capturado numa fotografia que registra uma época de felicidade idealizada ao lado da mãe, de quem possui boas memórias. O vale que dá nome a obra e é tão perseguido pela mulher talvez seja um mero subterfúgio para seguir frente, ao menos em termos geográficos, pois não deixa de ser contraditório por razões outras.
O longa dirigido por Clarissa Campolina e Sérgio Borges é um road movie de estrutura e execução irretocáveis, pois soa como um espírito livre tal qual sua protagonista, um organismo vivo e autônomo que evolui com o acúmulo de experiências. Não por acaso, quando vemos Dora pela primeira vez, somos induzidos a encará-la como alguém no início de uma jornada, quando na verdade, a narrativa apenas faz um recorte de seu cotidiano de andanças pelo interior de Minas Gerais.

Desconectada da sociedade, ainda que guardando resquícios de civilidade, ela pertence às estradas pelas quais transita de cidadezinha a cidadezinha, ambicionando apenas sua subsistência e um canto para se escorar enquanto recarrega suas energias e reabastece sua mochila. Num mundo egoísta e desconfiado, pode ser muito a oferecer, como uma dona de bar deixa claro em determinado momento. Dora, no entanto, só precisa se manter em movimento e é sintomático que os enquadramentos teimem em posicioná-la diminuta no canto inferior do quadro, ressaltando sua pequenez perante o mundo.

O que impede Suçuarana de se entregar à total arbitrariedade são eventos que corroboram a discrepância moral (ou de pensamento) que separam a heroína de outras pessoas (para o bem e para o mal). E o ponto de conexão é o simpático cachorro caramelo determinado a seguí-la e que surge quase como uma entidade protetora, salvando-a de um predador sexual aqui e levando-a um potencial porto seguro acolá. Injustamente batizado de Encrenca, o animal presente nos créditos como Tony Stark ajuda a humanizar a protagonista, cuja resiliência muitas vezes remete a uma personalidade dura, uma casca grossa forjada através dos vários anos na estrada. Teles toma o filme para si ao assumir a determinação esfíngica de Dora, sem rompantes histriônicos, apenas através do olhar, ora cansado, ora muito mais significativo.

Nesse ponto, o personagem vivido por Carlos Francisco (Bacurau) e que o destino insiste em colocar no caminho de Dora, catalisa essa possibilidade de futuro que jamais chega a se transformar em dilema. Ela não foi feita para integrar um sistema, embora seja capaz de funcionar como uma peça de sua engrenagem. A essa altura, o subestimado papel de Tony Stark ganha importância ao estabelecer um limite para a protagonista. E se tantos cachorros já foram premiados em festivais mundo afora, como o Uggy de O Artista (2011) e, mais recentemente, o Messi de Anatomia de Uma Queda (2023), não seria absurdo reconhecer a excelência deste carismático intérprete canino, crucial para o desenvolvimento da trama.

Que por sua vez merece créditos por se esquivar de atalhos narrativos e facilitações. Campolina e Borges optam por confiarem em sua audiência, dando-se ao luxo de se concentrarem apenas nas complexidades dramáticas, filosóficas e sociais deste mosaico fascinante e repleto de brasilidade que chega aos cinemas como uma pérola pronta para ser descoberta.
NOTA 8