"Tempos de Bárbarie - Ato I: Terapia da Vingança" promete trilogia brasileira de ação
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

"Tempos de Bárbarie - Ato I: Terapia da Vingança" promete trilogia brasileira de ação


Carla é uma advogada bem-sucedida que vive confortavelmente com o marido médico e a filha pré-adolescente. Numa noite fatídica, porém, as duas são abordadas por uma falsa blitz e a menina é baleada, permanecendo em coma por meses. Sem obter respostas satisfatórias da polícia e esbarrando na famigerada burocracia brasileira, Clara resolve agir por conta própria, buscando fazer justiça com as próprias mãos. Convenhamos, essa não é a mais original das premissas e você certamente já viu inúmeros filmes baseados nessa ideia. O diferencial, porém, é que a história foi concebida por ninguém menos que Marcos Bernstein, autor de alguns dos maiores sucessos do Cinema Brasileiro. E só.


Bernstein talvez seja mais famoso por ter co-escrito Central do Brasil em 1998 ao lado de Walter Salles e João Emanuel Carneiro (que posteriormente se tornaria um prolífico autor de novelas), mas já havia estreado como roteirista três anos antes com o ótimo Terra Estrangeira, sua primeira colaboração com Salles. O carioca também roteirizou outras obras badaladas, como O Xangô de Baker Street (adaptação do livro homônimo de Jô Soares), Zuzu Angel e Chico Xavier. Essa experiência como autor, o credenciou a aceitar o desafio de enveredar pelos caminhos da direção, estreando na função com O Outro Lado da Rua (2004), produção que contou com estrelas do calibre de Fernanda Montenegro e Raul Cortez no elenco. Nas quase duas décadas que se seguiram, Marcos Bernstein continuou alternando sua carreira entre roteirista e diretor, obtendo destaque por ter escrito obras como os bons Somos Tão Jovens, Faroeste Caboclo e o superestimado Pequeno Segredo, escolhido como o representante brasileiro na tentativa de emplacar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional (sem sucesso).

Tempos de Barbárie: Ato I – Terapia da Vingança é uma tentativa do realizador de se aproximar do Cinema de gênero, numa ilusória carência identificada por aqueles incapazes de enxergarem a riqueza da produção brasileira. Seu mais novo longa-metragem, no entanto, não é a primeira vez que investe num tipo mais específico e convencional de linguagem. Afinal, há poucos meses as plataformas digitais receberam O Amor Dá Voltas, comédia romântica repleta de boas intenções por parte do cineasta, mas que nem o elenco foi capaz de driblar o texto derivativo, também de autoria de Bernstein.

Os mesmos problemas que acometeram a produção estrelada por Cléo Pires, também atrapalham o desenvolvimento deste novo filme com Cláudia Abreu. O diretor/roteirista demonstra pleno conhecimento da estrutura do gênero que quer abordar, manuseando clichês e convenções com alguma destreza enquanto exibe um estilo adequado como realizador, mas esbarra na dificuldade de oferecer ao público algo que vá além do que já é exaustivamente ofertado em outras praças. Se O Amor Dá Voltas dependia do carisma e da química de seu elenco para impedir que o espectador notasse a ausência alarmante de originalidade por trás das situações concebidas, Tempos de Barbárie sofre com um texto que promete mais do que consegue cumprir.

Iniciando a projeção com uma cartela informando que “aproximadamente 50 mil pessoas morrem por armas de fogo todos os anos” e que “após o aumento no registro de novas armas o crescimento anual de casos saltou de 0,9% para 4%”, Bernstein escancara sua inspiração na época em que o país esteve sob um governo de extrema direita. Essa ideia, em contrapartida, se perde durante o desenvolvimento, já que os holofotes são direcionados apenas para as consequências daqueles dados.

Mais preocupante do que ver um roteirista experiente como Bernstein incapaz de perceber que uma simples estatística não seria o bastante para sustentar um longa-metragem de quase duas horas de projeção, só o fato de esses mesmos números representarem uma mera desculpa para o cineasta/roteirista brincar com mais um gênero, lidando com clichês e signos como uma criança deslumbrada ao abrir uma caixa de brinquedos. Mas se a acomodação em entregar um produto deliberadamente derivativo fosse o único problema do início desta planejada trilogia, talvez a empreitada resultasse, ao menos, numa experiência envolvente, tal qual aconteceu com O Amor Dá Voltas.

Após um início tenso, in media res (quando a narrativa começa em plena ação), Tempos de Barbárie não demora a mostrar ao espectador que se trata de uma típica história de vigilante, convertendo a excepcional Cláudia Abreu no arquétipo da heroína atormentada que busca justiça a qualquer custo. A fotografia caprichada abusa das cores frias numa paleta quase dessaturada que ilustra a opacidade de Carla, ao passo que não hesita em se entregar a feixes de luz, sombras e luz florescente quando há a oportunidade, dando ao filme uma roupagem de thriller urbano que só o prejudica na comparação aos clássicos do subgênero, especialmente aqueles dirigidos por Michael Mann. Bernstein parece ter feito o dever de casa e até consegue flertar com uma atmosfera tensa e opressora. Infelizmente, não passa do flerte, pois o texto escrito pelo próprio diretor sabota as intenções da produção.

Ele demonstra ter perdido de vista o conceito de sutileza, concebendo diálogos com o único objetivo de transmitir informações ao espectador, fazendo com que conversas se transformem em artificiais trocas de biografias (“você não é do crime como eu”, informa o advogado vivido por Alexandre Borges). Há também um excesso de didatismo, principalmente quando é necessário explicar a gravidade do estado de saúde de Bruna (“ela está em coma nível 3, o mais profundo!”). Para piorar, quase todos os coadjuvantes são unidimensionais, como o marido de Carla, interpretado pelo talentoso Cesar Mello, que já havia brilhado no bacana O Pastor e o Guerrilheiro. Os policiais são caricaturas que escancaram o maniqueísmo do script (“é tudo farinha do mesmo saco!”, “a gente não erra!”). A falta de desenvolvimento afeta até mesmo a dedicada Julia Lemmertz, que se sai bem ao transmitir calor humano como a líder de um grupo de apoio, mas vê seus esforços destroçados pelo final controverso.

Já Cláudia Abreu, atriz cujo imenso talento já foi comprovado não apenas na TV (como a inesquecível Laura da novela Celebridade, capaz de elevar até mesmo o patamar do limitado Márcio Garcia, seu par romântico), mas também no Cinema, vide os excelentes O Homem do Ano e Berenice Procura, empresta credibilidade, densidade e expressividade a Carla, ecoando com habilidade o vórtice emocional pelo qual a advogada está passando. Seja no olhar carregado, no jeito desesperançado de caminhar ou nos gestos (a força desproporcional ao manejar uma arma), Abreu é outra prejudicada, mas não apenas pelo roteiro.

Como explicar, por exemplo, o fato de Carla sempre aparecer maquiada? Alguns poderão lembrar do Batman de Matt Reeves, com Robert Pattinson deixando de abraçar a veia autodestrutiva de Bruce Wayne ao surgir menos desgrenhado do que o necessário, mas nada se compara a ver a protagonista (tomada pela amargura) impecavelmente produzida enquanto estapeia um policial corrupto. Falando em Batman, à Carla só falta o traje de morcego, quando no terceiro ato deixa de ser uma mera advogada enlutada para planejar e executar sequências de tortura de homens com o dobro de seu tamanho (e experiência).

E já que mencionei o final, quando Tempos de Barbárie finalmente se entrega ao absurdo, repare na forma como a montagem auxilia Clara em seus crimes. Se você achou estranho, tente imaginar a personagem derrubando, amarrando e transportando três homens potencialmente armados e perigosos para um lugar remoto. Só mesmo uma elipse bem forçada para permitir tal disparate, que não chega a ser mais impressionante do que uma fracassada tentativa de suicídio, com a arma disparando na altura da têmpora de uma determinada personagem, que miraculosamente sobrevive. “A arma falhou”, alguém explica, já que o espectador aparentemente seria incapaz de ter percebido que a pessoa continuou viva. “A bala está na cabeça, mas não afetou os movimentos”, informa um "médico" determinado a enlouquecer os médicos de verdade que assistirem ao filme. Aliás, se a arma falhou, como o projétil pode ter sido disparado?

Sendo assim, por mais que tente desesperadamente encaixar Tempos de Barbárie: Ato I – Terapia da Vingança no filão dos thrillers urbanos de vingança, é uma pena que Marcos Bernstein apenas consiga posicionar os signos do gênero, sem demonstrar muita habilidade para conceber uma história suficientemente verossímil para abarcá-los. Cláudia Abreu merecia mais.


NOTA 4


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