'Beau Tem Medo': Uma Épica Odisseia Rumo a Lugar Nenhum
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

'Beau Tem Medo': Uma Épica Odisseia Rumo a Lugar Nenhum


Beau Wassermann (Joaquin Phoenix) é o filho de uma bem-sucedida empresária do ramo industrial. Tendo crescido sem pai, supostamente morto durante a relação sexual responsável por sua concepção, Beau chega à meia-idade como um homem de modos gentis, mas incapaz de controlar sua ansiedade, o que o leva a se consultar periodicamente com um terapeuta. Na véspera do dia em que viajaria para visitar sua mãe, porém, Beau acaba sendo vítima de acontecimentos no mínimo peculiares que o impedem de ter uma boa noite de sono, fazendo-o entrar numa espiral de desespero ao perder o voo no dia seguinte. Não bastasse a frustração compartilhada com a mãe, mais tarde ele ainda recebe por telefone a notícia de que ela morreu num terrível acidente doméstico, levando-o a embarcar numa jornada em que confrontará seus medos do jeito mais kafkiano possível.

Prato cheio para estudantes e entusiastas de Psicologia, Beau Tem Medo é o mais novo longa-metragem escrito e dirigido por Ari Aster (Hereditário, Midsommar – O Mal Não Espera a Noite), que agora conta com o apoio da produtora A24, queridinha da nova geração de cinéfilos e responsável também por Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, vencedor de sete Oscars no mês passado. Rodeado de expectativas após se estabelecer como autor, Aster é mais um a ser engolido pelas próprias pretensões, exibindo um pedantismo que só não é mais impressionante do que a duração de sua mais nova história, contada em três inchadíssimas horas.

O que não deixa de ser curioso é que o primeiro ato de Beau is Afraid (no original) se mostra espetacularmente eficaz em vários níveis. Primeiro, Aster mergulha o espectador numa atmosfera extremamente inquietante e não é preciso ir longe para constatar isso, pois o diretor/roteirista é hábil ao sugerir a desordem psicológica de Beau através de sequências absolutamente caóticas. Como uma extensão da mente do protagonista, dominada por um medo latente que invariavelmente o leva a experimentar níveis crescentes de paranoia e ansiedade, os primeiros 40 minutos de projeção se encarregam de mostrar ruas abarrotadas de pessoas dos mais variados tipos e realizando todo tipo de atividades. Enquanto Beau caminha calmamente pela calçada, por exemplo, vemos alguém dançando ao lado de moradores de rua, homens se agredindo e até mesmo homicídios sendo cometidos. Voltar para casa é uma tarefa mais difícil do que parece, mas não tanto quanto sair dela.

Pois em determinado momento, quando Beau se dá conta de que terá de comprar água, ele imagina toda a sorte de acontecimentos que ilustram com perfeição a paranoia que o toma de supetão, algo ressaltado também pelo design de som (repare como um assassinato pode ser ouvido logo após Beau encerrar uma ligação telefônica com a mãe). As necessidades de Beau, claro, são sempre exacerbadas pelo sujeito, que não mede esforços para transformá-las em verdadeiras epopeias, como na supracitada sequência em que sai para comprar uma mera garrafa d’água. O motivo de tamanho desespero? O terapeuta recomendou que tomasse seus comprimidos com água. Pior acontece quando ele, após ter perdido a chave de casa, imagina que seu apartamento pode estar sendo invadido. Essas brincadeiras que ocasionalmente transcendem o campo fílmico enriquecem a narrativa especialmente por soarem como um grande quebra-cabeça cujas peças estão sempre ao alcance do espectador, sugerindo se tratar daquele tipo apetitoso de história que diverte ainda mais quando decifrada.

Infelizmente, Ari Aster abandona essa linha narrativa para atirar Beau numa jornada rumo a lugar nenhum, dando voltas e mais voltas sobre ideias abordadas no primeiro ato, mas sem um objetivo claro senão o de tumultuar, seguindo uma tendência contemporânea de Cinema na qual quanto mais truncada for uma narrativa, mais sofisticada ela pode soar para uma parcela do público. Por mais convoluto, despropositado e até aleatório que possa parecer o segundo ato, inundado por delírios surrealistas (incluindo uma passagem animada) que apenas sublinham impressões sugeridas logo no início, mas jamais desenvolvidas ou instigadas (apenas repetidas), há sim material para análise. O problema é que a substância do discurso de Ari Aster é soterrada por uma linguagem pretensamente críptica, bagunçando o entendimento de tropos e motivando a crença de que estes são embaralhados para não haver o risco de diminuírem o valor da obra caso fossem dispostos numa abordagem mais direta e compreensível.

Chamando a atenção da Indústria por combinar um domínio invejável do horror em uma história atmosférica e repleta de predicados técnicos e dramáticos (Toni Collete merecia destaque na temporada de premiações), Aster não demorou a demonstrar fluência também na linguagem da nova geração, formada por uma leva de cinéfilos ávidos por tramas movidas a simbolismos e de fácil viralização. Midsommar, no caso, foi sua primeira incursão hollywoodiana pela seara do Cinema de excentricidades. Ousado por rodar um filme de terror em cenários majoritariamente bem iluminados, indo na contramão do gênero, o nova-iorquino soube equilibrar a experiência do espectador ao mantê-lo a par do que estava acontecendo, mesmo que esporadicamente de longe.

O que não acontece em Beau Tem Medo, visto que o cineasta larga seu espectador à deriva, completamente desamparado enquanto o submete a um tour de force tão desafiador quanto ao imposto a Joaquin Phoenix, que parece ter ganho o papel em função de sua experiência com personagens mentalmente instáveis (levou o Oscar por Coringa, lembremos) e não nega fogo ao carregar o filme nas costas. Mesmo quando tudo parece fora de órbita, Phoenix é o único elo com o público que permanece intacto ao final, quando a intensidade de sua performance representa uma bem-vinda âncora para a produção.

Apesar de concebido através de elucubrações afetadas, a produção tem lampejos de lucidez ao tecer comentários pertinentes sobre o caos urbano das metrópoles, consistentemente desenvolvido entre as loucuras do primeiro ato e mais desajeitadamente sobre a relação entre Beau e sua mãe e, claro, sobre saúde mental, mas que se perdem no meio das divagações de um realizador obviamente descontrolado, talvez deslumbrado com as possibilidades oferecidas por uma produtora famosa por não interferir no processo criativo de seus diretores.

Quando escrevi sobre Batem à Porta, filme de M. Night Shyamalan que estreou há pouco mais de dois meses, mencionei que o indiano tinha voltado à boa forma com um filme claramente em sintonia com os produtores de conteúdo do YouTube, que se esbaldariam com vídeos “explicando” o que escapou ao espectador menos atento. Pois Ari Aster trilha o mesmo caminho ao fazer de Beau Tem Medo seu projeto mais presunçoso, oferecendo uma prova de resistência a seu espectador com quase três horas de uma história que espalhafatosamente jamais sai do lugar.


NOTA 5


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