'Blitz' mostra os horrores da Guerra sob o olhar de uma criança perdida
Quando venceu o Oscar de Melhor Filme em 2013 com o necessário 12 Anos de Escravidão, o cineasta Steve McQueen coroou uma carreira invejável sedimentada no cenário Independente. Hoje ele é famoso como uma das principais vozes antirracistas do Cinema contemporâneo, vocação encontrada logo após a obra supracitada, mas seus primeiros passos como diretor, através das ótimas colaborações com o ator Michael Fassbender em Hunger (2006), sua estreia, e Shame (2008), já mostravam potencial. As Viúvas (2018), por exemplo, não abandonou a tensão racial, mas trouxe um McQueen seguro ao comandar um tenso e cru filme de assalto. Blitz, seu primeiro longa-metragem de ficção em seis anos, não abandona a verve socialmente engajada, mas trata de revelar outras de suas facetas como cineasta.
Para aqueles acostumados aos seus dramas densos e povoados por personagens imersos em questões espinhosas, a produção que chegou ao Apple TV+ no último final de semana vai provocar estranheza, especialmente por trazer um roteiro (também assinado pelo britânico) mais palatável, estruturado num modelo clássico que já produziu obras como Cavalo de Guerra (2011) e O Impossível (2012). Pois a ideia de colocar um personagem para perder seu ponto de equilíbrio e passar toda a projeção penando para reencontrá-lo passa longe de ser convencional, sejamos sinceros. O diferencial, como já é de se esperar, reside justamente nas habilidades de Steve McQueen como diretor.
A trama se passa em 1941, auge da Segunda Guerra Mundial, quando a capital inglesa sofreu impiedosos bombardeios efetuados pelos aviões nazistas (os efeitos podem ser vistos até hoje na paisagem inglesa). Os londrinos tinham de parar imediatamente o que estivessem fazendo assim que uma sirene começava a tocar, era a forma encontrada pelo Governo de alertar a população e guiá-la, através de oficiais de plantão, para abrigos antiaéreos. Muitas vezes, no entanto, não havia tempo para encontrá-los e cabia aos cidadãos ocuparem estações de metrô até as explosões cessarem.
Em meio a esse cotidiano desesperador, George (Elliott Heffernan) um menino de 9 anos, vive com a mãe operária, Rita (Saoirse Ronan), e o avô veterano Gerald (Paul Weller). Mestiço, o jovem é vítima constante de bullying, mas mal sabe ele que o pior ainda está por vir, já que sua mãe aceita enviá-lo de trem para um suposto lugar seguro que está recebendo crianças a fim de afastá-las das zonas bombardeadas. Claro que George se revolta com a decisão e não demora muito a saltar do vagão em movimento. Sozinho, ele deve reencontrar o caminho de casa enquanto foge das autoridades (determinadas a recolocá-lo no trem). O foco da narrativa, então, se divide entre o menino e a mãe e enquanto as provações do primeiro se revelam mais interessantes do ponto de vista dramático, a segunda patina com um desenvolvimento menos cuidadoso por parte do roteiro, transformando Blitz numa experiência de altos e baixos.
Elogiar Saoirse Ronan é chover no molhado e faz pouco mais de um mês desde que pude vê-la brilhar na pele da protagonista alcóolatra de The Outrun (pelo qual está bem cotada na temporada de premiações) no Festival do Rio. Aqui, por outro lado, a irlandesa quatro vezes indicada ao Oscar tem muito menos material para trabalhar, já que fica limitada a um papel reativo. Rita é relegada a rompantes de raiva e tristeza, sempre relacionadas ao distanciamento do filho e quando Steve McQueen tenta alargar seu arco dramático, acaba tropeçando. Ele até coloca a mulher para perseguir o sonho de cantar, mas pesa a mão ao injetar uma subtrama política, enfraquecendo Rita por tabela. Enquanto isso, o estreante Elliott Heffernan faz um trabalho formidável ao fugir das caretas tão comuns em intérpretes mais jovens, soando carismático e expressivo.
Infelizmente, o maior deslize de Blitz é justamente em relação a seu elenco, pois é difícil não se constranger com a participação de Harris Dickinson, um ator que conseguiu superar a imagem de galã para abraçar produções mais ambiciosas, como Garra de Ferro, Triângulo da Tristeza e o vindouro Babygirl, todos cogitados para o Oscar. Por isso, é inacreditável vê-lo com tão pouco tempo de tela, como se Steve McQueen não soubesse o que fazer exatamente com seu personagem, um soldado que aparece em doses homeopáticas para ajudar Rita. Prefiro acreditar que a maior parte de suas cenas acabou cortada na ilha de edição, do que aceitar o fato de Dickinson ter topado encarnar um sujeito absolutamente descartável para a história, indo na contramão de sua ascensão em Hollywood.
McQueen, felizmente, compensa essas falhas ao demonstrar uma segurança absoluta nas várias e surpreendentes sequências de ação. Note, por exemplo, como ele sempre adota um plano aéreo antes de um set-piece, estabelecendo a geografia da cena para que o espectador entenda o que está acontecendo. O destaque nesse sentido fica por conta da espetacular passagem em que George atravessa uma ponte enquanto uma bomba explode ao seu lado e um avião em chamas colide com um prédio logo à sua frente. Mas o diretor também se sai excepcionalmente bem ao filmar cenas no interior de uma danceteria, levando o espectador a imaginar um musical assinado por ele. Colocando sua câmera no meio da multidão dançante, ele passeia pelo local injetando energia ao ilustrar o clima alegre e descontraído dos londrinos.
Por falar em clima, a atmosfera, especialidade da casa, é outro ponto a favor de McQueen (com a bem-vinda ajuda do compositor genial Hans Zimmer). Seja nas cenas rodadas nas estações subterrâneas ou nas pequenas missões que George recebe de um bandido, o cineasta é hábil ao evocar tensão (menção honrosa para o jump scare que antecede uma inundação). Também é preciso elogiar o bom uso dos momentos de respiro, pois quando não está atirando seus personagens em situações extremas, o realizador aproveita para destrinchar uma subtrama envolvendo a etnia de George, abarcando momentos que incluem desde a violência policial (através de um flashback envolvendo o pai do garoto) até o preconceito estrutural.
Pois Blitz (derivado da palavra alemã Blitzkrieg, cujo significado também passa pela tática que se utiliza do elemento surpresa) faz jus à carreira de Steve McQueen, ocupando seu lugar como blockbuster, mas sem deixar de lado a consciência social de alguém sempre dedicado a denunciar as mazelas enfrentadas pelos negros. Um McQueen versátil, capaz de adaptar o seu discurso a um escopo maior e tecnicamente mais complexo.
NOTA 7,5
Gostei das observações. Parabéns