Festival do Rio 2023 | Dia 7
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  • Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 7

Atualizado: 29 de out. de 2023

Monster (Kaibutsu, 2023) | Japão


Com mais de trinta anos de carreira, o cineasta japonês Hirokazu Kore-eda se tornou conhecido por conceber narrativas delicadas e intimistas, exatamente como Assunto de Família (Shoplifters), longa-metragem vencedor da Palma de Ouro e indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2018. Em Monster, primeira produção desde A Luz da Ilusão (1995) que ele dirige sem ter escrito o roteiro, Kore-eda trilha um caminho diferente, estabelecendo um enredo mais intrincado em sua estrutura, mas não menos poderoso emocionalmente.

Escrito por Yûji Sakamoto, o script é engenhoso ao apresentar várias perspectivas diferentes de uma mesma história, contada a partir do momento em que o jovem Minato (Soya Kurokawa), chega em casa ferido e coloca a culpa no professor recém-contratado. Furiosa, a mãe do rapaz (Sakura Ando, também de Assunto de Família) vai até a escola buscando explicações, conseguindo apenas um protocolar pedido de desculpas da diretora (Yûko Tanaka) e de Hori (Eita Nagayama), o tal professor.

Um dos maiores prazeres proporcionados por Kaibutsu (no original) é justamente deixar que o espectador monte o quebra-cabeças narrativo do seu jeito, sem obter qualquer tipo de ajuda. Sakamoto apenas fornece as peças, versões de cada personagem envolvido, promovendo um vaivém que ao invés de soar cansativo, eleva o mistério. Como numa sequência com um personagem sendo aprisionado pelos travessos colegas no banheiro. Enquanto ele grita por ajuda, o professor se aproxima, no exato momento que Minato deixa o local, despertando suspeita. Alguns minutos depois, a câmera é posicionada dentro do tal banheiro e descobrimos que Minato não foi o responsável por aprisionar o amigo, na verdade, ele estava tentando libertá-lo.

Essas contradições, que subvertem as expectativas do público mais ou menos a cada vinte minutos, frequentemente induzem ao erro, favorecendo especulações que nem sempre se provam certas. E Sakamoto faz isso sem trapacear, utilizando-se meramente do artifício de embaçar o contexto durante as mudanças. Nesse sentido, ele se beneficia de uma montagem absolutamente extraordinária do próprio diretor Kore-eda, que liga as versões através de dispositivos secundários. Note como o som de um instrumento de sopro é ouvido ao fundo de uma cena, apenas para, mais tarde, revelar-se fundamental para contextualizar outro momento.


Mas, afinal, quem é o tal monstro? Essa é uma dúvida compartilhada por público e personagens e pode levar a interpretações distintas. Na verdade, o significado de “monstro” e a realidade dos fatos pouco importam ao realizador, que mergulha o espectador numa densa espiral de perda, rejeição, descoberta e culpa com uma visceralidade poucas vezes vista em sua carreira. Seria Minato vítima ou agressor? Quem provocou o incêndio que abre a narrativa? São perguntas que se apequenam diante da carga emocional construída pela produção.

Uma espécie de Close caso fosse escrito por Christopher Nolan (sem o tradicional excesso de explicações, obviamente), Monster é um filme tão complexo quanto emotivo. E enquanto Lukas Dhont soube trabalhar como ninguém o subtexto de sua obra-prima, a mais nova excelência atingida por seu colega japonês é mais incisiva em seu discurso, o que futuramente deve representar uma ótima sessão dupla.


NOTA 9

 

Céu de Plástico (Műanyag Égbolt, 2023) | Hungria


Criada através da rotoscopia (técnica também utilizada em O Homem Duplo, de Richard Linklater), a animação húngara Céu de Plástico passa longe de possuir uma história para crianças. Na verdade, até uma parcela considerável de adultos torcerá o nariz para essa distopia extremamente pessimista.


A história se passa em 2123 e revela uma Terra sem vida, com rios e oceanos secos contribuindo para a geografia desértica. Sem animais e praticamente sem qualquer tipo de vegetação, a natureza agoniza, dando seus últimos suspiros no interior de Budapeste, cidade que se mantém graças a uma rígida política de sobrevivência.


Vivendo sob a proteção de uma gigantesca redoma, os cidadãos aceitam um acordo de viverem apenas até os 50 anos, quando doarão o corpo para se transformar numa árvore e, posteriormente, servir de alimento para o restante da população. A estratégia dá certo, mas quando Nora resolve antecipar sua transformação em árvore por não suportar o peso de uma recente tragédia familiar, seu marido inicia uma jornada intensa para recuperar o corpo da amada e desfazer o procedimento.


A primeira hora de projeção é intrigante e envolvente, apresentando um visual riquíssimo que além da tecnologia utilizada, ainda faz a alegria de fãs de ficções científicas distópicas, caprichando nos veículos e na arquitetura moderna. Já a metade final acaba se entregando a um desenvolvimento bobo e prejudicado pela trilha insistente e opressora de fulano de tal. Mas o grande problema de Céu de Plástico é não conseguir escapar de clichês e convenções, tomando atalhos narrativos que tornam a experiência mais previsível e semelhante a outros filmes superiores.


NOTA 7


 

The Teacher's Lounge (Das Lehrerzimmer, 2023) | Alemanha


Representante da Alemanha na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional (o país europeu venceu no ano passado com Nada de Novo No Front), The Teacher's Lounge ("A Sala dos Professores", em tradução literal), coloca uma professora no centro de um vórtice de acontecimentos catastróficos que ela própria iniciou.


Carla Nowak (Leonie Benesch, de A Fita Branca) é o tipo de profissional que tem domínio absoluto da turma. Não apenas isso, Carla é querida pelos alunos, respeitada pelos colegas docentes e goza de um prestígio invejável com a direção. Rápida e eficaz na solução de problemas, ele tem jogo de cintura suficiente para resolver qualquer situação que aparecer. Ou pelo menos era o que ela achava.


Quando uma série de furtos é detectada no colégio, ela se mostra reticente em colaborar com a investigação. Afinal, a direção elege um pacato aluno como principal suspeito. Filho de imigrantes turcos, ele é encarado como um alvo fácil pela educadora, que faz de tudo para mostrar que a apuração dos fatos está indo por um caminho perigoso. Logo depois, ela senta-se à mesa na sala dos professores para realizar uma chamada de vídeo, mas é novamente chamada ao gabinete da diretora e sai às pressas, deixando a câmera ligada.


Quando retorna, Carla não só detecta que sua carteira está com dinheiro a menos, como tem a ideia de retroceder a gravação das imagens, percebendo que o(a) suspeito(a) está usando uma blusa com estampa de estrelas, coincidentemente (ou não), a mesma vestida pela Sra. Kuhn (Eva Löbaus, a Miriam Dreyfuss de Bastardos Inglórios) secretária da direção, que trabalha há mais de 14 anos na instituição. Carla até tenta uma abordagem sutil, sugerindo uma solução pacífica para a mulher, que acaba terrivelmente ofendida com a acusação, negando veementemente. A professora, então vai direto à sua superior, apresentando o vídeo como principal evidência. Enquanto uma nova investigação se inicia, a Sra. Kuhn é suspensa, recebendo férias, mas não antes de fazer um escarcéu, chamando Carla de mentirosa.


Com isso, a reputação até então imaculada de "solucionadora de conflitos" é posta em xeque, já que ela passa a contar com o desprezo de Oskar (Leonard Stettnisch), filho da secretária e aluno (dos bons) de Carla. O menino, inicialmente apenas não entende os motivos de a mãe ficar impossibilitada de trabalhar e quando finalmente é exposto aos fatos, se revolta a ponto de estimular uma rebelião por conta de seus colegas de classe. Apesar de extensa, essa premissa corresponde apenas a um terço do roteiro escrito pelo próprio diretor Ilker Çatak em parceria com Johannes Duncker, que apresenta novos e cada vez mais desafiadores obstáculos na vida profissional da protagonista.


Quando algum problema surge no caminho de Carla, ela faz questão de encará-lo de peito aberto, mas a cada solução encontrada, mais questões surgem, como se ela estivesse diante da Hidra, cortando uma cabeça apenas para mais e mais aparecerem. Com isso, a produção mantém o espectador envolvido numa teia de acontecimentos semelhante a uma bola de neve, gerando uma expectativa tão grande quanto perigosa. The Teacher's Lounge conseguirá apresentar uma conclusão à altura do que vimos até então?


Tenso, dinâmico e absolutamente imersivo, o filme conta com uma performance estupenda de Leonie Benesch, que absorve toda a carga dramática da personagem e transmite as emoções através do rosto expressivo e da linguagem corporal enérgica, agitada. A direção, infelizmente, soa dispersa ao apostar em sequências que buscam uma aproximação com o terror psicológico, ilustrando a exaustão psicológica da protagonista. São momentos em que o cineasta Ilker Çatak pesa a mão e distrai o espectador do que realmente importa: a jornada da protagonista.


Incorporando questões atuais como o racismo estrutural, a xenofobia, a privacidade e até mesmo a liberdade de expressão (numa ótima passagem envolvendo o jornal da escola), The Teacher's Lounge é oferece uma experiência que dificilmente permitirá que o espectador baixe a guarda durante seus pouco menos de 100 minutos de projeção.


NOTA 8,5


 

Todos Nós Desconhecidos (All of Us Strangers, 2023) | Inglaterra


Na época em que a conta oficial do Festival do Rio fazia pesquisas para saber os filmes internacionais que o público gostaria de ver a partir do dia 5 de outubro, All of Us Strangers (na época sequer possuia título em português) era quase uma unanimidade, aparecendo entre os pedidos de praticamente todos que respondiam. Isso quando não encabeçava as listas.


Especulado como uma das produções no radar do Oscar em virtude de sua aclamação junto à Crítica, o novo longa-metragem de Andrew Haigh (do engenhoso 45 Anos) parece ter caído no gosto popular muito antes do que deveria, ocasionando um aumento exponencial de expectativa. Como sempre digo, a expectativa é a mãe da frustração e por isso prefiro entrar na sala de projeção sabendo o mínimo possível e apenas torcendo para que seja bom. Quando as luzes se acenderam no estonteante Cine Odeon na noite do feriado de 12 de Outubro, um vozerio tomou conta das fileiras abarrotadas. Enquanto muitos se mostravam decepcionados, outros limitavam-se a dizer que a experiência oferecida foi diferente daquilo que esperavam.


Uma pena, pois é desonesto com a obra (qualquer uma, na verdade), atribuir uma cotação baixa apenas pela altíssima expectativa criada em torno dela, assim como seria igualmente injusto conceder uma boa nota a um filme do qual pouco se esperava. No meu caso, Todos Nós Desconhecidos chega, sim, a funcionar, mas longe de se enquadrar em algum extremo.


A história de Adam (Andrew Scott), um roteirista solitário que acaba se aproximando do único vizinho que possui no imenso e esvaziado prédio em que reside, se desenvolve com dois pés na fantasia. Logo no início ficamos sabendo que ele, mesmo depois de décadas, ainda ressente a morte prematura dos pais, algo que acaba fazendo com que ele faça visitas esporádicas à casa onde cresceu. Surpreendentemente, ele os encontra exatamente como eram e vislumbra a oportunidade de conversar sobre tudo que o acidente de carro lhe impossibilitou de mencionar. Nesse meio-tempo, ele estreita os laços com Harry (Paul Mescal), com quem passa a frequentar boates e trocar confidências no silêncio das madrugadas.


Conhecido por papéis mais verborrágicos e chamativos, como o padre de Fleabag, o Moriarty de Sherlock e o C de 007 Contra SPECTRE, Scott compõe Adam como um homem profundamente sensível, embora consciente de sua natureza solitária. Em paz com a vida que passa a levar, ele entra em conflito com os ideais conservadores da mãe (Claire Foy, de Entre Mulheres) e encontra um meio-termo com o pacífico e compreensivo pai vivido por Jamie Bell (Sem Remorso). Eficiente, ele encara o protagonismo com naturalidade, exibindo relativa química com Paul Mescal.


Lançado ao estrelato após a performance arrebatadora no excelente Aftersun, Mescal opta por canalizar sua energia na personalidade de Harry, muito mais forte e expansiva do que a de Adam. Harry, no entanto, é apenas um instrumento utilizado pelo roteiro para englobar a trama envolvendo o protagonista, visto que temos poucos vislumbres do verdadeiro Harry.


Embora claramente concebido para arrancar rios de lágrimas do espectador, Todos Nós Desconhecidos falha justamente graças à condução frouxa de Andrew Haigh, cineasta que confia demais no calor humano exalado pelos dois homens. E mesmo quando algumas surpresas irrompem no terceiro ato, ao espectador cabe apenas uma reação neutra, apenas aceitando o destino mais lógico que caberia a Adam. A intrincada estrutura (mais uma...) busca oportunidades para colar as sequências fantasiosas com aquelas que incluem Harry, mas a frieza da direção de Haigh influencia diretamente no resultado.


Pecando também por incluir planos espetacularmente cafonas nos últimos instantes de projeção, trata-se de um filme longe de ser ruim, mas ainda mais longe de ser o que seus ansiosos e passionais espectadores aguardavam. O que diz muito menos sobre o filme do que dessa parcela do público.


NOTA 7

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