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Foto do escritorGuilherme Cândido

'O Corvo' perde identidade em refilmagem que não se justifica


Despontando em 2012 com o visualmente extasiante e narrativamente entediante Branca de Neve e o Caçador, o cineasta britânico Rupert Sanders ousou tentar transpor para as telas o magnífico Ghost in the Shell, mangá de Masamune Shirow publicado no Brasil sob o título O Fantasma do Futuro. Embora achincalhado à época, não considero essa atrocidade toda. Apesar de claramente limitar a profundidade dada por Shirow, A Vigilante do Amanhã (como estreou por aqui), foi competente o bastante para aliar ação de qualidade a um banquete visual difícil de resistir. Rupert Sanders parece ter tomado gosto pela coisa e aceitou assumir outra adaptação dos quadrinhos para as telonas: O Corvo (não confundir com as produções estreladas por Boris Karloff e Vincent Price no século passado).

Personagem criado pelo quadrinista estadunidense James O’Barr em 1989, o Corvo é o alter-ego de Eric Draven, guitarrista de uma banda de rock que no dia de seu casamento é morto ao lado da noiva. Sujeito pacato que só queria viver em paz com a amada, ele tem a rara oportunidade de amenizar sua desgraça, retornando dos mortos para “consertar o que está errado”, como é explicitado no texto original. Ainda que cultuada pelos entusiastas de histórias em quadrinhos, a tragédia de Draven só se tornou célebre graças à sua primeira adaptação ao Cinema. Não pela qualidade distinta da produção, mas por ter marcado a despedida de Brandon Lee (filho do lendário Bruce Lee), morto acidentalmente durante as filmagens. Não pense, porém, que esse foi o fim da jornada de Eric Draven fora dos quadrinhos, pois Hollywood não desiste tão facilmente. O Corvo ainda ganharia duas continuações menores e uma série de TV antes de descansar em paz. Ou quase isso.

Lembra de Rupert Sanders? Pois é, ele ataca novamente. Após se aventurar pelos mangás e fracassar nas bilheterias, ele recebe uma segunda chance com a oportunidade de tirar a franquia da geladeira. Para ajudá-lo na tarefa, a Lionsgate trouxe Zach Baylin (indicado ao Oscar por King Richard: Criando Campeãs) e o novato William Josef Schneider, roteiristas que ficariam responsáveis por um reboot do universo criado por O’Barr. No papel de Draven, o homem do momento: Bill Skarsgård, eterno Pennywise de It: A Coisa e recentemente visto no amalucado Contra o Mundo. A versão de 1994 não chega a ser uma obra-prima, mas contava com o carisma de Lee aliado a um visual estilosíssimo e que ainda se beneficiava de uma abordagem simples e direta, pois não havia espaço para floreios e explicações desnecessárias.

Essa é a principal diferença em relação ao filme que está agonizando nas bilheterias nesse momento, já que o novo O Corvo tenta se inserir na fórmula que gere os blockbusters modernos (um legado da Marvel). Na prática, isso significa acompanhar um ato inteiro dedicado à história de origem não apenas de Eric, mas também de Shelley, o amor de sua vida. Enquanto o longa original optou por se concentrar na jornada pós-morte do personagem, somos obrigados a encarar longos minutos de algo que passa muito longe de se encaixar na proposta gótica da história. Saem os cenários sombrios e chuvosos e entra uma instituição para jovens problemáticos. Os aposentos claros e as vestimentas cor-de-rosa farão qualquer fã da criação de James O’Barr franzir a testa.

Draven agora é um jovem de poucas palavras e com questões domésticas. Numa rápida sequência, sugere-se abandono e maus tratos como partes do trauma que atormenta o rapaz, preenchendo uma lacuna que, francamente, nunca existiu. Esse desajuste, no entanto, acaba servindo para aproximá-lo de Shelley, vivida pela cantora inglesa FKA twigs, estreando como atriz. O grande problema enfrentado pela garota foi ter testemunhado um evento estranhíssimo envolvendo um (literalmente) poderoso membro da alta sociedade local.

No lugar, que era para ficar num meio-termo entre um hospital (graças a uma espécie de terapia de grupo) e uma prisão, mas está mais para uma colônia de férias (pela ausência de risco e, sobretudo, pela incompetência dos seguranças), Shelley se aproxima de Eric e ambos resolvem fugir. A facilidade com que eles conseguem escapar só mostra a negligência absoluta da produção para com a polícia, mas isso é assunto para outro momento. Uma interminável montagem com os pombinhos se curtindo surge em tela até finalmente O Corvo começar de fato. E infelizmente não fica muito melhor.

Nem cabe apontar as mudanças na personalidade de Eric, antes alguém tentando consertar o mundo para preencher o vazio em seu coração, agora uma vítima dessa falsa abordagem punk e com pinceladas do arquétipo do herói relutante e mais humano. A simbiose entre ator e personagem, que costuma render maravilhas, definitivamente não acontece com Bill Skarsgård, ator talentoso, mas que não parece comprar completamente a ideia de Draven. Discreto, ele comete o deslize de se deixar levar pelo texto e acaba sabotado pelo fraco material concebido por Zach Baylin e William Josef Schneider.

A dupla, preguiçosa, se interessa menos pela psique do protagonista e mais pela sua habilidade de trucidar inimigos, como se a dor fosse a força motriz de sua violência, que por sua vez se torna o único canal de acesso possível entre público e protagonista. Na ausência de uma profundidade dramática, o oco Eric Draven se transforma na personificação da vingança, num reducionismo que depende exclusivamente da nossa aderência à máxima dos fins que justificam os meios.

A escolha de Danny Huston (Sombras de um Crime) como o vilão principal já expõe a falta de preocupação em criar um oponente à altura do anti-herói. Acostumado a papéis genéricos, o filho do grande cineasta John Huston, assume um antagonista que em momento algum diz a que vem. Talvez um comentário pútrido à classe alta, talvez uma entidade do mesmo plano do Corvo. Talvez alguém tão privilegiado quanto Draven. São muitas dúvidas e nenhuma explicação. Nos contentemos com o momento em que ambos ficarão frente a frente num confronto que, alerto, não merece muitas expectativas.

Se o próprio vilão carece de informações, não espere algo diferente das outras esferas dramáticas. Aliás, onde está a polícia? Após um policial corrupto sair de cena, não há outra oposição mundana. Um massacre num teatro lotado (com direito a cabeças rolando no palco) também não motiva a cobertura da imprensa. Os coadjuvantes são meros instrumentos do roteiro, cumprindo funções burocráticas como responder perguntas do Corvo. E o que dizer da reviravolta envolvendo a invulnerabilidade do herói? Quando não é lindo, o Amor pode ser extremamente piegas.

É pouco, ainda mais se levarmos em consideração que a evolução de Draven, de pessoa comum a entidade impiedosa, é feita sem nuances. Num momento, ele é recepcionado por uma figura misteriosa e apresenta dúvidas banais, refletindo a própria natureza claudicante. Ele erra, cai, morre novamente, desiste e repete o ciclo, apenas para, num clique, se transformar num assassino habilidoso e implacável nos instantes finais. Essas sequências, diga-se de passagem, destacam-se apenas pela violência gráfica exremada, já que não há uma coreografia elaborada e a direção sequer preocupa-se em dar alguma identidade visual às espadadas de Draven, mesmo que Sanders, ao lado do diretor de fotografia Steve Annis, conceba alguns planos plasticamente atraentes (como aquele em que Draven se levanta de uma poça d’água com o céu acinzentado ao fundo e vários corvos à sua volta).

Esse, indubitavelmente, é o pior pecado cometido em O Corvo, um filme sem identidade (visual e dramatúrgica) que busca lograr (ou lucrar?) algum êxito surrupiando elementos utilizados em obras melhores. E quando lembra de seguir algumas características do personagem, constrange. Afinal, mostrar Eric caminhando à noite sob a chuva ao som de uma música pesada não torna o filme gótico, mas sim um forte candidato ao prêmio de pior clipe da MTV (e olha que a trilha sonora está acima do nível do filme). O desconhecimento do personagem original e a negligência por parte dos roteiristas matam as pretensões de uma produção que aspira à franquia, mas não faz por onde. Por quê deveríamos nos importar com um justiceiro sobrenatural fazendo mingau de criminosos, quando já tivemos e ainda temos uma quantidade imensurável de obras fazendo o mesmo, só que de formas infinitamente melhores?


John Wick nem precisou voltar do inferno para fazer o que esse Corvo faz. E com muito mais estilo, verdade seja dita.


NOTA 3,5

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