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Brasileiro 'O Último Azul' constrói bela ode à liberdade

  • Foto do escritor: Guilherme Cândido
    Guilherme Cândido
  • há 1 dia
  • 5 min de leitura

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O corpo, a religião e a distopia são elementos caros à filmografia de Gabriel Mascaro, realizador pernambucano vencedor do Leão de Prata do Festival de Berlim por este O Último Azul, seu quinto longa-metragem. Divino Amor (2019), encarado como a obra mais provocativa do recifense, foi um conto de advertência sobre os perigos da ascensão dos evangélicos ao poder, numa distopia carregada de um deboche que mais assustava do que divertia, em função do caminho que trilhávamos a passos largos naquela época. Cenas de sexo explícito e muita nudez desafiavam o conservadorismo puritano ainda muito presente em nossa Sociedade. Ora, até Boi Neon (2015), meu favorito entre suas criações, deu um jeito de encaixar a supracitada tríade temática em sua narrativa, pois se um vaqueiro aspirante a estilista tendo de viver no ambiente machista e reacionário do agro (e obtendo sucesso) não é uma distopia, não sei o que mais poderia sê-lo.

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O Último Azul vai pelo mesmo caminho ao inserir sua história num futuro indeterminado em que o Brasil é governado sob o slogan “o futuro é para todos”. Uma afirmação que é questionada quando descobrimos que, ao completar oitenta anos de idade, todo cidadão é obrigado a se mudar para uma misteriosa colônia sob o falso pretexto de transferir ao Estado sua custódia. Alguém, inclusive, chega a sugerir que esta mudança deve ser encarada como um presente pelas décadas de serviços prestados ao país, quando, na verdade, é uma forma de se livrar de uma parcela da população tradicionalmente encarada como um estorvo pelos governantes. Uma desculpa para que os mais jovens possam se manter produtivos sem se preocupar em cuidar de pais e mães.

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Nesse contexto, Tereza (Denise Weinberg) vive seus últimos três anos antes do retiro compulsório, trabalhando diariamente (leia-se: ainda contribuindo ativamente para a Sociedade) e alimentando sonhos, como o de viajar de avião. Por isso, ela encara estarrecida a notícia de sua aposentadoria forçada, já que “abaixaram para setenta e cinco anos a idade obrigatória para integrar a ‘Colônia’”. Afinal, ela ainda está saudável, lúcida e com disposição para gozar da liberdade. Com o desespero tomando conta e delatores à espreita, ela resolve escapar das garras do Estado. Primeiro, tentando comprar uma passagem de avião para “qualquer lugar”, depois indo à rodoviária à procura de um ônibus para “o mais distante possível”, sempre esbarrando em questões burocráticas já que, enquanto não aceita seu destino, sua “custódia” é transferida para a filha, de quem precisa de autorização para exercer o simples direito de ir e vir.

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A partir desse ponto, o roteiro assinado por Mascaro em parceria com o estreante Tibério Azul, adapta o modelo consagrado de road movie para uma espécie de “river movie”, com Tereza se deparando com os mais distintos personagens enquanto corta os rios sinuosos da região amazônica. O cenário é justamento o primeiro contato do espectador com a beleza inerente à obra, com a fotografia do mexicano Guillermo Garza produzindo imagens prontas para serem emolduradas e exibidas em exposições ao redor do mundo. Mas Garza também faz bom uso das cores, especialmente do contraste entre a paleta crua e cinzenta usada para retratar o cotidiano langoroso de Tereza e o tom esverdeado que pinta suas últimas aventuras.

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Mascaro, dono de uma assinatura visual marcante, alcança um equilíbrio invejável entre o caráter naturalmente fabulesco da história (com toques sutis de realismo mágico) e a atmosfera opressiva que sufoca a protagonista, adotando uma câmera distante que ressalta a impressão de que Tereza está sempre sendo observada. Esses planos mais abertos também possibilitam ao diretor alimentar o autoritarismo que rege aquele lugar, jogando luz sobre grafites com mensagens como “devolvam o meu avô” e “gente velha não é mercadoria”, além de investir na sugestiva ideia de colocar um servidor público “marcando” a casa de Tereza sob a justificativa de estar “prestando tributo”, quando está deixando claro para todos que ali mora alguém prestes a se mudar para a Colônia. Aliás, é sintomático que jamais seja esclarecido o que é de fato aquele lugar, propositalmente provocando especulações que, por que não, resvalam em derivações de campos de concentração.

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Além disso, ele volta a alfinetar a hipocrisia de bravatas comumente sustentadas pela extrema direita: Enquanto ouvimos uma transmissão estatal via rádio valorizar a família, a realidade se mostra diferente, com patriarcas sendo arrancados do ventre familiar e deixando filhos e netos sem notícias. Da mesma forma, ao ouvir algo sobre o futuro, Tereza imediatamente rebate (“velho não tem futuro!”).

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Que por sua vez é vivida por Denise Weinberg como uma mulher que defende firmemente a própria liberdade. E seu arco dramático, que vai do enrijecimento forjado por anos de trabalho em jornada dupla sem a garantia de um futuro (olha ele de novo), à leveza da descoberta de um mundo pronto para ser desbravado, impõe uma camada de esperança ao circo sombrio montado pelo Estado. Essa esperança fica ainda mais palpável quando Tereza conhece Roberta, uma suposta ex-freira que é encarnada pela cubana Miriam Socarrás como uma mulher de gargalhada fácil e largos sorrisos, traduzindo a felicidade incalculável pelo simples fato de poder ser um espírito livre. Falando nisso, o filme dá potência à imagem de Tereza meramente soltando os cabelos.

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O que nos leva a Rodrigo Santoro, um ator que finalmente vem recebendo reconhecimento pelo talento que demonstra desde o impactante Bicho de Sete Cabeças (2000). O petropolitano tem uma passagem curta, mas crucial não apenas para a trajetória de Tereza, mas para introduzir o caracol azul eludido pelo título. O bicho é responsável pela produção de um líquido que, caso administrado como colírio, produz um efeito entorpecente que é explicado por Cadu (Santoro) como uma “abertura de caminho”, mostrando o futuro. Não chegamos a assumir a perspectiva de quem está sob uso, mas a impressão é a de que o receptor aos poucos se torna mais aberto à ideia de manifestar seus arrependimentos, inseguranças e medos, injetando energia até no melancólico barqueiro.

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A “baba azul”, como é chamada por Cadu, é apenas um dos elementos que se surgem discretos e mais tarde se revelam importantes recursos narrativos. Portanto, quando um cassino clandestino famoso pelos altos prêmios é mencionado, ou alguém faz questão de ensinar Tereza a jogar no Bicho pela mera crença na chamada “sorte de principiante”, é o roteiro plantando sementes para colher mais tarde.

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Em meio a críticas diretas ao etarismo e simbolismos sutis sobre valores abstratos, O Último Azul defende a tese de que a Liberdade é o bem mais valioso de um ser humano, mas também representa, no complexo e sombrio mundo em que vivemos, talvez o único ideal que vale realmente a pena ser perseguido.


NOTA 8,5



 

 

 

 

 

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