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Foto do escritorGuilherme Cândido

Drama da Netflix 'Piano de Família' não consegue disfarçar sua natureza teatral


Terceira obra do dramaturgo August Wilson (1945 - 2005), referenciado como “O Poeta Teatral da América Negra”, a ser levado aos cinemas em quatro anos, Piano de Família chega à Netflix após uma turnê bem-sucedida pelo circuito de festivais, ganhando elogios, por exemplo, em Telluride e Toronto. O longa estava pronto para ganhar uma campanha rumo ao Oscar, obsessão da gigante do streaming, mas acabou perdendo força, especialmente após Emilia Pérez aparecer entre os mais cotados aos prêmios da Academia. De fato há um abismo separando o vencedor do prêmio de melhor interpretação feminina em Cannes desta adaptação da peça vencedora do Pulitzer no final da década de 80.


A história gira em torno de dois irmãos que vivem realidades distintas em 1936. Numa madrugada comum, Boy Willie (John David Washington) invade a casa do tio Doeker (Samuel L. Jackson, ainda longe do Oscar), animado após uma longa viagem vindo do sul. Mas sua estadia no norte dos Estados Unidos terminará assim que conseguir vender todas as melancias que trouxe consigo. Ou ao menos é o que garante à irmã. O que Berniece (Danielle Deadwyler, de Till – A Busca Por Justiça) não sabe é que ele também quer vender o piano que há décadas permanece com a família. O instrumento traz entalhado imagens de seus antepassados e é tratado como inegociável pela mulher, dando início a uma briga tão ferrenha que irá expor feridas antigas.

Pelo visto, não é só o piano que é de família, já que após Denzel Washington escrever, produzir, dirigir e estrelar a versão cinematográfica de Um Limite Entre Nós (2016), chegou a vez de seu filho caçula comandar a própria transposição de um texto de August Wilson para as telas. A produção também é protagonizada por John David Washington, primogênito de Denzel, um dos produtores ao lado de Katia, outra filha. Para fechar o empreendimento familiar com chave de ouro, os créditos ainda contam com uma dedicatória à matriarca Pauletta Washington.

Assim como aconteceu com Um Limite Entre Nós, The Piano Lesson (no original) sofre com as tradicionais barreiras de linguagem entre Teatro e Cinema. O script co-escrito pelo diretor Malcolm Washington ao lado de Virgil Williams permanece fiel (até demais) ao texto de Wilson, provavelmente esperando que a força do elenco se sobreporá às evidentes limitações cênicas. O problema é que o expressionismo de Piano de Família faz mais sentido no palco do que na tela e a falta de um controle maior diminui o escopo do projeto, mesmo se tratando de um produto do streaming.

John David, um dos poucos membros do elenco original e intérprete tradicionalmente comedido (vide Infiltrado na Klan e Tenet), encarna Boy Willie aos berros, adotando uma postura expansiva que mergulha todas as cenas que protagoniza num frenesi quase inexpugnável. Danielle Deadwyler, por sua vez, compõe Berniece como o exato oposto do irmão, exibindo uma postura mais serena. O contraste tinha tudo para incendiar a dinâmica em cena, mas a realidade é mais dura, com Washington e Deadwyler cansando o espectador até mais do que o ritmo excessivamente lento da montagem.

Tenta-se driblar a limitação espacial com flashbacks suntuosos, captados em planos abertos e bem iluminados em passagens que trazem algum aprofundamento aos personagens e suas relações, mas que não diminuem a sensação palpável de estarmos diante de uma peça gravada. Nem mesmo a câmera intrusiva de Washington, sempre próxima dos atores, disfarça a natureza teatral da obra.

O roteirista Virgil Williams, o mesmo do épico Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi, confia demais no poder das palavras de Wilson, um legítimo poeta, mas esquece de injetar personalidade, tornando o texto refém das performances irregulares do elenco. Se o protagonista é extrovertido e barulhento, Ray Fisher, por exemplo, segue o padrão Deadwyler, mas sem os olhos arregalados e a técnica da talentosa atriz. O ex-Ciborgue da DC soa artificial ao emular o sotaque de Lymon e a voz baixa só piora suas tentativas de transformá-lo numa pessoa de carne e osso. Quem consegue atingir algum equilíbrio é Corey Hawkins, que na pele de Avery, um pastor iniciante, além de servir para jogar luz sobre nuances de Berniece, ainda faz a ponte para o lado fantasmagórico da narrativa.

O flerte com o sobrenatural, aliás, é o que de melhor tem Piano de Família, funcionando tanto como uma metáfora sobre o passado dos personagens, como numa manifestação literal deste. É quando Malcolm Washington dá vazão ao seu potencial, usufruindo da fotografia escura e do cenário de época para construir um clima de tensão que aos poucos se transforma em terror.


É pouco se considerarmos o investimento da Netflix para enfim conquistar seu Oscar de Melhor Filme e piora quando constatamos a opaca utilização da obra-prima de August Wilson.


NOTA 6

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